29 May 2020
Publicado previamente no site da Dungeon Geek
NA: #iHunt é um jogo mais maduro, portanto sua resenha também será. Contem altos níveis de sarcasmo e baixo calão.
No século 21, tudo parece muito fácil: o capitalismo tardio das dotcom mostrou o caminho, apesar da bolha. Virou quase uma regra 34 da vida: se pode ser feito, alguém já fez uma app de celular para gerenciar quem faz aquilo.
A maior rede de hotéis não tem um quarto de hotel.
A maior rede de entregas não possui um carro de entrega.
A maior rede de taxis não tem um taxi.
A maior rede de caçadores de monstros não tem um caçador contratado.
Sim… Monstros existem, e não apenas os burgueses do caralho que ficam tomando café cagado por passarinhos e pagando milhares de dólares no copo.
Desde o início da existência humanos, os monstros existem, em todas as suas formas e tipos. Claro, nem todos são criaturas assombrosas destruidoras de mentes. E nem todas são material de fanfic de Crepúsculo. Mas todos precisam saciar sua fome, não importa sua origem: mesmo aqueles que surgem a partir de desastres corporativos (sim, eles acontecem) precisam se alimentar.
E claro que tem gente que quer se livrar dessas encrencas.
E com o menor custo possível.
E por que não trabalhar na “economia do compartilhamento” (que piada) e colocar em uma app o pedido de “ajuda contra o vampiro que quer chupar minha irmã”?
Azar do bando de fodidos que vão se tretar com o vampiro. Ninguém mandou não estudar em boas faculdades: afinal, é só se esforçar o suficiente e tudo dá certo, né?
Meu pau de óculos!
Preparando a caçada
#iHunt - Hunting Monsters on the Gig Economy (Caçando Monstros na Economia do Compartilhamento) é um dos mais interessantes jogos que saíram recentemente. Baseado em uma série de livros da mesma autora disponíveis também em seu itch.io, basicamente ele é um jogo sobre millenials.
Não… Não estamos falando de millenials que tomam café cagado por pássaros em copos de papel reciclável ou feitos de juta colhida de maneira ambientalmente sustentável por ribeirinhos da Amazônia.
Esses com certeza tem grana o bastante para não se envolverem com #iHunting, a não ser para encomendar serviços.
Os millenials aqui são aqueles que o liberalismo econômico, somado com o conservadorismo social, literalmente tem fodido: aqueles que não se qualificam como parte da classe média alta.
#iHunting não é para Faria Limers.
Normalmente, o #iHunter típico é alguém que precisa desesperadamente de dinheiro, ao ponto de considerar arriscar o próprio pescoço caçando monstros. Uma pessoa pode ter tido contato com monstros e nem por isso tornar-se um #iHunter: é necessário um certo grau de desespero para colocar-se diante de uma criatura que pode arrancar sua cabeça e manter você vivo o suficiente para ver seu corpo esviscerado cair no chão.
Nada que alguns anos de empréstimo estudantil e cartões de crédito atrasados não façam. Ou ser expulso de casa por causa do babaca do pai abusivo e/ou misógino e/ou homofóbico e/ou “Cidadão de Bem®” e precisar ratear o aluguel de uma casa com alguns amigos.
Claro… Na teoria, seu emprego diário deveria bancar isso e mais, mas a verdade é que os empregos atuais, com sua precarização cada vez maior e salários cada vez menores, estão empurrando as pessoas para o abismo social. O neoliberalismo acabou com o colchão social, a rede de proteção que fazia com que a pessoa pudesse, de repente, passar alguns meses sem emprego se especializando para tentar algo novo: agora é cobra comendo cobra. E o dinheiro do trabalho das 7 às 5 permite apenas sobreviver e olhe lá.
Claro, existem agrupamentos de #iHunters, e até mesmo algumas categorizações dos mesmos baseados em suas estratégicas de caçada, mas mesmo isso não é algo formal, mas uma linguagem própria surgida da troca de informações importantes para a sobrevivência. Seres humanos são sociais e se agrupam conforme a necessidade. Tudo depende de saber qual é o seu Lance.
Apenas torça para que você não tenha sua “luta justa” contra um vampiro/lobisomem/demônio/coisa-bizonha-que-quer-seu-cérebro-como-comida-e-corpo-como-roupa. Isso pode ser o seu fim.
Instalando o App
#iHunt é um jogo baseado em Fate Básico, mas com algumas diferenças, em especial na criação dos Monstros.
Inicialmente, todo #iHunter possui 6 Aspectos: além de Dois livres a serem usados no final da criação de personagem, e do tradicional Conceito, temos o Drama, que substitui a Dificuldade com o mesmo objetivo: ser aquela pedra no sapato que ferra você vira e mexe, como “Vivendo em uma ocupação por vontade própria” ou “Me apaixono fácil”.
Além disso, dois Aspectos importantes são o seu Objetivo Real (Vision Board) e seu Trabalho Diurno (Daily Job)
O Objetivo Real é algo que você mira com muita intensidade: de certa forma, é algo que você deseja tanto, que é quando você acha que vai “vencer na vida”. Obviamente, você ainda não tem isso, mas é o símbolo máximo de sucesso que você pode imaginar, ao menos no momento. Pode ser qualquer coisa, como Uma Casa no Campo onde possa plantar meus amigos, meus discos e livros e nada mais, Uma Família de Verdade ou mesmo Que meu corpo reflita minha alma. O importante é que tem que ser algo que simbolize um desejo tão profundo que possa ser em muitos momentos o que vai fazer você se enfiar em #iHunting para tentar conseguir.
Já o Trabalho Diurno é o que você faz “de verdade”. Na moral, #iHunt não é exatamente uma forma segura de sobrevivência… E não apenas por causa dos monstros. Os clientes podem dar uma avaliação ruim e com isso o valor da caçada cair. O seu banco pode achar que o #iHunt é uma forma de lavagem de dinheiro e não permitir a grana entrar na tua conta. E mesmo com tudo isso, pode passar semanas sem que você encontre uma caçada que compense, considerando sua habilidade e valores. Você vai precisar de uma forma de se sustentar nesse meio tempo, e essa é o seu Trabalho Diurno. Na prática pode ser de tudo, de Reparar Celulares na 25 de Março a Youtuber em vias de se tornar famosa (#sqn) até mesmo a Princesa Disney de Festa Infantil ou VASP - Vagabundo Anônimo Sustentado pelo Pai. Não importa o que, essa é a forma que você tem de ganhar algum dinheiro para se virar, enquanto faz seus corres.
Além disso, nesse momento ou antes dele, você deve definir qual é o seu Lance (Kink). O Lance é como você caça monstros: os #iHunters se “dividem” em grupos informais por meio dos Lances, ainda que exista muito cruzamento entre os #iHunters ao ponto de que os Lances não sejam fixos o bastante para serem grupos formais, mas mais maneiras gerais de dizer sobre o estilo e método de cada #iHunter.
Ao escolher um Lance, você recebe uma Façanha exclusiva daquele Lance e destranca a possibilidade de comprar outras conforme evoluir como #iHunter. Os Lances são:
- Cavaleiros (Knights): o básico caçador de monstros. Se tem uma forma de matar o monstro na porrada, é assim que o Cavaleiro vai fazer. Senão, ele descobre como abrir uma brecha e aí então sentar a porrada no monstro. Pense em Buffy ou nos irmãos Winchester de Supernatural;
- Evileenas: chamados assim por causa de uma personagem de um filme trash do cenário, são os que buscam mais o conhecimento sobre os monstros, e algumas vezes até mesmo descobrem como operar magia ou coisas similares para enfrentar os monstros em seu próprio território. Pense em Giles de Buffy ou em John Constantine;
- Phooeys: os phooeys são um fenômeno da nossa era hiperconectada. Teóricos de Conspiração, hackers, cyberativistas que se envolveram com monstros e assim por diante, os phooey montaram toda uma rede de servidores mesh conectados na deep web usando serviços de redes sociais descentralizadas ao exemplo do Mastodon ou do Scuttlebutt para facilitar a troca de informações sobre monstros e de formas de tecnologias para lidar com eles. Provavelmente é a ele que você vai recorrer quando precisar de uma cópia PDF do Malleus Malleficarum ou para criar um dispositivo para capturar demônios. Pense nos Caça-Fantasmas com um pouco da Penelope Garcia de Criminal Minds;
- Os 66: formaram-se após uma série de eventos bizarros que sempre envolveram de uma forma ou de outra o número 66, como assassinatos cuja vítima recebeu exatos 66 golpes de faca, ou 66 igrejas queimadas ao mesmo tempo em diversos estados, os 66 lutam de maneira comunitária, agrupando-se e formando resistências para quebrar o sistema. Anarquistas, revolucionários, eles conseguem vencer por meio da destruição e reconstrução e são especialistas em achar brechas de algo e aproveitar contra elas. Monstro, governos, países, redes… Se existe uma porta, eles arrombam. Se não existe, eles criam uma e a arrombam. Pense nos Pistoleiros Solitários de Arquivo X;
Perceba que o fato de você estar em um Lance específico não quer dizer que você não possa aprender habilidades fora do que seria normal… Como diria o famoso xamã cobra Ess El-El de Shadowrun, “aprenda o que puder, porque na rua burrice mata mais rápido que bola de fogo”. A mesma regra vale para o #iHunt: mesmo que você seja um Evileena, é sempre bom aprender como lutar, afinal o monstro não vai cair sozinho, e aquele ritual que você pesquisou de nada vai adiantar se suas tripas estiverem para fora. Por outro lado, se você for um Cavaleiro, ficar batendo que nem um imbecil em um inimigo sobre o qual você nada conhece pode ser uma passagem só de ida para o Além, portanto conhecer um truque aqui ou ali de um Evileena ou 66 ajuda bastante.
E aqui temos outra mudança em #iHunt. Ao invés de vir com perícias, em #iHunt você tem pacotes de perícias que de certa forma permeiam ideias envolvendo certos tipos de profissões, como Ativista, Guerreiro, Trapaceiro, Influenciador ou até mesmo Serviço Social. Ao realizar um rolamento, você irá ver qual profissão é mais condizente com isso, ainda que existam referências.
A Vantagem
Uma regra importante surge na questão dos rolamentos de dados: uma luta entre #iHunters e monstros NUNCA É JUSTA. Dizer que “fulano teve uma luta justa” dentro do linguajar dos #iHunters é dizer que ele morreu. E em termos de regras, o #iHunt traz uma mecânica para simular isso que é A Vantagem (Edge).
A Vantagem representa a mão superior que um lado tem sobre o outro em conflitos. Normalmente os monstros terão a Vantagem de partida (isso fica a critério do Narrador), mas os #iHunters possuem todo tipo de mecanismo para tomar para si A Vantagem: pesquisar fraquezas, preparar armadilhas, colocar-se em locais onde podem atacar de maneira segura, tudo isso pode fazer com que os #iHunters tenham a vantagem sobre os monstros.
Enquanto tiver com a vantagem, qualquer personagem daquele lado pode utilizar uma primeira vez a mesma sem precisar pagar PDs para a usar (demais usos são ao custo de 1 PD). Sempre que usar a Vantagem, o personagem que o fizer substitui 1 dado Fate por 1 dado comum de 6 lados (d6), portanto rolando 3dF+1d6 ao invés de 4dF.
Isso gera uma grande vantagem mecânica, já que o valor médio do rolamento com vantagem estará quase no vale positivo do rolamento comum. Perceba que nessa situação da vantagem, existe menos de 20% de chance do rolamento sair com menos de +2, enquanto em um rolamento tradicional existe menos de 20% de sair +2 ou melhor (consulte os links se não acredita).
Essa variação faz com que monstros se tornem muito poderosos e ter-se a vantagem seja algo importantíssimo para um caçador caçar um monstro, já que às vezes é a diferença entre a vida e a morte do seu caçador. Para pegar a Vantagem para si, existem três formas.
A primeira é por meio de rolamentos de Superar contra um rolamento de defesa do monstro ou seu “nível de ameaça” (Star rating, mais sobre isso adiante), o que for maior.
A segunda é que certos Poderes e Características dos Monstros demandam que eles passem a Vantagem para a oposição ao utilizar tais poderes.
A terceira é caso você consiga uma defesa avassaladora (overwhelming defense) contra quem está com a Vantagem. Isso ocorre quando você é bem-sucedido com estilo na Defesa contra um ataque onde o alvo detém a Vantagem (não necessariamente a usou). Ao conseguir, você toma a Vantagem para si.
Uma coisa importante é que a Vantagem nunca é tomada para um indivíduo, mas sim para um lado: se tiverem quatro #iHunters contra um monstro e um dos #iHunters conseguir tomar a Vantagem, qualquer dos #iHunters pode recorrer à Vantagem, seguindo a restrição já citada de apenas um uso gratuito, os demais demandando PDs. Esse uso gratuito é “resetado” quando a Vantagem muda de lado.
Para determinar qual lado terá a vantagem, o narrador tem que analisar se:
- Nenhum dos lados possui monstros ou ambos possuem e o nível de ameaça dos mais poderosos é igual e;
- Não existe nenhuma vantagem que um lado tenha preparado para usar de maneira objetiva contra o outro.
Exemplo: Selena e Kyle estão caçando um vampiro de nível de ameaça 2. Como ambos são humanos e o alvo é um vampiro, na teoria um confronto entre ambos poderia gerar uma situação onde o Vampiro teria a Vantagem. Entretanto, Selena e Kyle são #iHunters experientes, e já prepararam algumas coisinhas para ajudar os mesmos contra o Vampiro. Como eles tem isso como Vantagens em mãos como Aspectos, por saberem que Esse Vampiro REALMENTE morre à luz do Sol e Ele é vaidoso demais para seu próprio bem. Com essas vantagens, o narrador pode dizer que ninguém tem vantagem ou mesmo que são os #iHunters que estão com a Vantagem devido a tal preparação.
Caso aconteça de não haver um lado que comece a cena com a Vantagem, ainda assim a Vantagem pode surgir pelos meios acima.
Os Monstros de #iHunt
#iHunt é sobre caçar monstros e sobre os questionamentos sobre isso. Claro que é muito divertido você mandar um FDP de um vampiro traficante de drogas e de prostitutas para a vala, alguém para quem o alemão tem até uma palavra (Backpfeifengesicht - procurem no Google.). Mas a questão é que #iHunt não é sobre isso exatamente: claro que existem caras que são Backpfeifengesicht de montão no cenário de San Genaro onde se passa o jogo, mas isso não quer dizer que todos os monstros sejam assim. Na verdade, muito provavelmente eles são uma minoria, ainda que numerosa. Em #iHunt monstros não são alegorias: monstros são criaturas como quaisquer outras. Pense que Santa Clarita Diet é uma opção muito possível (e provável) em #iHunt. E às vezes você enquanto #iHunter vai se descobrir trabalhando para o FDP da vez (isso é que dá deslizar para direita em qualquer coisa).
De qualquer modo…
Monstros… Sem ele não existe caçada de monstros e sem caçada de monstros nada de #iHunt, e nada de grana.
Portanto, vamos a eles
Na realidade, o livro trás alguns moldes para os monstros (clades) que permitem que você não precise construir o seu monstros do zero. Na prática, todos os monstros pagam por seus Poderes (Gifts) e Habilidades(Features) com Recarga, recebendo Recarga adicional ao comprar Falhas (Banes).
E aqui entra uma coisa importante…
Nível de Ameaça (Star System)
Ao criar o seu monstro, você irá usar o Nível de Ameaça (de 1 a 5) para definir seu poder inicial. Ele diz quantos pontos o monstro tem para distribuir em seus pacotes de perícias, o maior nível que ele pode ter no mesmo e total de recarga que ele pode ter. A partir daí, distribua as coisas normalmente.
Quando houver a necessidade de usar o Nível de Ameaça em testes, como no caso de tentar-se obter a Vantagem, se for uma oposição passiva, utilize o dobro do Nível de Ameaça como dificuldade. Portanto, ao tomar-se a Vantagem de um monstro de nível 3, você deve no mínimo conseguir um rolamento acima de Fantástico (+6) (considerando que o rolamento oposto dele foi menor).
E isso puxa uma coisa:
É possível jogar-se com um monstro caçador de monstros (sim, estamos falando de Blade e Castiel aqui, senhores)?
Na prática sim. Se isso ocorrer, dê ao jogador 20 níveis para distribuir em seus Pacotes de Perícias e 5 Pontos de Recarga para gastar em seus poderes de monstro e coisas do gênero. Isso vai tornar o personagem muito poderoso, mas lembre-se que monstros possuem fraquezas bem sérias. Além disso, é necessário que o personagem tenha sido contaminado por um monstro previamente e isso pode não ser simples (muitas vezes é mais fácil morrer no processo, lembrando Um Lobisomem Americano em Londres)
Os tipos de Monstros e sua variedade
O sistema de Poderes, Características e Fraquezas torna criar monstros únicos algo razoavelmente simples se você tiver planejamento prévio. Entretanto, você pode não ter tempo de o fazer. Para isso, dentro de #iHunt existem modos de criar monstros tradicionais, mas com seu próprio twist. Além disso, existem as subclades, onde você compra algumas habilidades adicionais para definir subtipos específicos com fraquezas e poderes diferentes.
Dito isso, alguns deles são comuns… Mas com diferenças específicas:
- Vampiros: nascidos da sede de sangue, são mais Bram Stoker e menos Crepúsculo, embora ainda possam andar à luz do sol sem brilhar ou derreter. Também não tem problemas com símbolos sagrados e convites (é rude, mas ainda assim podem entrar onde quiser quando quiser);
- Feiticeiros: com a popularização do ocultismo e a troca de PDFs via Internet, de maneira geral os feiticeiros tem aumentado em números, vindos de todos os tipos e backgrounds. Entretanto, sempre são complicados, em especial quando arrumam uma cópia em PDF do Necronomicon (quem achou que isso era uma boa ideia?)
- Lobisomens: a maioria dos lobisomens são nascidos assim e em geral conseguem lidar bem com “aquelas noites”. E na prática muitos não precisam de carne humana (jogue umas coxas de galinha cruas para eles e está de boa). O maior problema são os poucos que surgem de transmissões virais e os que piram na batatinha no processo. Algumas vezes ambos em um pacote só. Além disso, são muito territoriais, e se eles perceberem você aprontando em seus territórios, que Deus tenha piedade;
- Reptoides: invasores alienígenas Illuminati que desejam dominar o mundo e devorar a humanidade… Ok, tire a parte do Illuminati: os reptoides em #iHunt não são exatamente espertos, mas são muito violentos. Não muito mais que o típico redneck eleitor do Trump, mas o suficiente para serem encrenca. Alguns se reproduzem ao estilo Alien o Oitavo Passageiro, o que adiciona injúria à calúnia;
- Demônios: Ok… A coisa aqui é que nem todo Demônio vem do Inferno e nem todo é mal. Ok… A maioria é, mas ainda assim o que você precisa saber é que eles são poderosos e se alimentam de algum tipo de força vital específica. A Duqueza Infernal de San Genaro mantem raves especiais onde ela se alimenta da adoração dos participantes por sua música eletrônica, que escutam e dançam até caírem extenuados. Porém, ela tem uma dieta meio restrita… Nada de balas e doces, se você me entende… Muitos #iHunters gostam dela, e os que não gostam e tentaram a caçar não estão mais entre nós;
- Os Mortos Famintos: Walking Dead, Resident Evil, iZombie, Santa Clarita Diet… Todos eles tem um pouco da verdade sobre os desmortos, aqueles que por alguma razão morreram mas não permaneceram mortos! Há até mesmo aqueles que são altamente funcionais: mantenha os mesmos alimentados e eles podem até ajudar a caçar seus irmãos não tão favorecidos e os crimes que eles cometem (já vimos isso em algum lugar?)
A Essência
Por fim, vários dos monstros possuem algum tipo de medida de poder que eles tem para usar suas habilidades, por meio da Essência. Ela normalmente se carrega de alguma forma e é usada de maneiras diferentes conforme seus poderes: vampiros bebem sangue, Mortos Famintos devoram cérebros (ou outras partes), Feiticeiros realizam sacrifícios ou rituais para obter energia da natureza… Você entendeu.
Em certos monstros, a Essência também serve para determinar o quão desesperado ele está para obter a mesma. A Essência é dividida em cinco níveis (Faminto, Sem Alimento, Saciado, Cheio e Glutão) onde cada vez que um poder que demande Essência for usado e demandar o mesmo, a Essência cai em um nível.
A Essência também é um Aspecto no Monstro que pode ser usado, mas com uma diferença: cada nível de Essência fornece um bônus diferente para usos de Pontos de Destino ao invocar-se a mesma (chamado de Potência). Sempre que a Essência de um monstro aumentar, ele recebe uma invocação gratuita, e sempre que ela abaixar, a oposição recebe uma invocação gratuita. Isso torna um monstro muito perigoso quanto Faminto, mas #iHunters espertos (que chamamos de sobreviventes) costumam usar bem isso para atacar um Monstro quando ele está faminto e a Potência então voltar-se contra o mesmo.
A lista de Habilidades, Poderes e Fraquezas engloba muitas das situações tradicionais e explicam muito bem como as usar, assim como seus custos.
Jogando Seguro (ou “Fascistas não são bem-vindos”)
Antes de seguirmos adiante, ao falarmos dos monstros temos que falar sobre Jogo Seguro. Muitos poderes dos Monstros vão contra a agência do personagem. E isso pode ser extremamente chato para os jogadores. Além disso, muitas situações propostas em #iHunt são potencialmente gatilhantes: lembre-se que os personagens são gente fodida, que só se enfia em #iHunts porque a opção é o crime. Gente que já é vítima de esculacho o tempo todo por qualquer razão (incluindo nenhuma). Além disso, como você vai explicar para o policial (e lembre-se: em #iHunt, All Cops Are Bastards, todo policial é um babaca) que o CEO que você acabou de apagar na verdade era um Demônio que se alimenta do desespero provocado pelas demissões em massa de empresas falidas ou adquiridas por outras?
Para evitar isso, além de velhos conhecidos como o X-Card e o Controle Remoto, o #iHunt propõe um questionário similar ao visto em Consent in Gaming da Monte Cook Games, onde você detalha o tipo de coisas que você aceita ou não em jogo, e se você só topa se não te envolver. Além disso, existe o conceito do Intervalo Comercial, que é uma variação do X-Card: qualquer um pode pedir um Intervalo Comercial para respirar um pouco se as coisas saírem do controles (sempre um ótimo momento para a pizza com o refri). Dê um tempo, despressurize um pouco e depois volte para a ação
Pode parecer estranho isso, mas ao saber qual o espaço de manobra que você tem, fica mais interessante para você definir limites e posicionamentos dentro do cenário. Afinal de contas, se ninguém tá no clima para homofobia, por que colocar isso? Para que chamar o personagem de “negão fedido” se o grupo não quer racismo na mesa?
Aproveitando… Se você é um fascista (enrustido ou não), #iHunt não é para você. Você não é o Constantine, no máximo você é um mal-amado (para não utilizar termo mais chulo) que precisa terapia (mesmo que isso signifique ter uma pia cheia de roupa suja para lavar).
Para deixar bem claro, como escrito no livro…
NO FASCISTS
If you’re a fascist, you’re not welcome to play this game. It’s against the rules. If you’re reading this and thinking, “You just call everyone you disagree with a fascist,” then you’re probably a fascist, or incapable of drawing inferences from context and acknowledging a dangerous political climate that causes the oppressed to be hyperbolic. Don’t play this game. Heal yourself. Grow. Learn. Watch some Mr. Rogers’ Neighborhood or something.
Ou no velho português:
NADA DE FASCISTAS
Se você é um fascista, você não é bem vindo nesse jogo. É contra as regras. Se você está lendo isso e pensando, “Porra, agora todo mundo que não concorda com você é fascista?”, então provavelmente você é um fascista, ou ao menos é incapaz de inferir coisas do contexto e reconhecer um ambiente político perigoso que tornou aqueles que são oprimidos mais raivosos. Não jogo esse jogo. Vá se cuidar. Cresça. Aprenda. Vá assistir “Um lindo dia na vizinhança” ou algo similar.
#sendoumfodido
Você deve ter reparado que vivo usando o termo “fodido” para os #iHunters. E não tenho a menor vontade de me justificar, pois é verdade.
Pense bem: que tipo de louco se enfiaria em uma pancadaria contra monstros sobrenaturais por grana?
#iHunters não estão nessa por que querem, mas sim porque, de certa forma, o capitalismo falhou com eles, ou eles basicamente são onde o capitalismo externalizou tudo: afinal de contas, para que pagar um tratamento para AIDS para todos? Na hora de virar os olhinhos foi bom, né? Se fode aí.
Dito isso, todo mundo dá seus pulos para sobreviver:
Existe um capítulo inteiro chamado #THINKINGPOOR mostrando como é você ser um fodido o bastante para ir em #iHunt. Como é não saber se você vai ter almoço, conseguir roupas apenas em doações do Exército da Salvação e usar a conectividade da biblioteca local para baixar um PDF que você precisa para estudar uma fraqueza de um monstro da caçada atual com aquele tablet que você comprou com parte da grana que ganhou na última caçada e que já tá com a tela quebrada e você não conseguiu trocar a tela pois você usou o dinheiro para comprar a insulina para sua diabetes (350 dólares na farmácia local), sendo que você ainda tem que pagar a luz!
Existe toda uma série de reflexões sobre o que gera o fenômeno de tantas pessoas recorrerem a economia de compartilhamento (spoiler: não é porque elas andam viciadas em cafés de grãos cagados por passarinhos), por que isso passa a sensação de incompetência (que é mítica) e sobre como pessoas de uma renda menor desenvolvem um estilo de vida onde ou elas se empanturram ou morrem de fome.
Além disso, uma coisa importante: no capitalismo a riqueza é fetichizada. Ser rico é mais do que ter dinheiro: o dinheiro serve como forma de dignidade. O Dinheiro é melhor que Deus, por que garante poder. E alguém fodido não tem isso. Isso leva a necessidade que uma pessoa fodida teria para ter o carro do ano, o celular top… Te faz se sentir importante.
E existe todas as explicações de como o sistema fode você: como o fato de você precisar de um comprovante de residência te fode para abrir uma conta no banco, o que te fode na dificuldade de receber seu salário. Como cada uma dessas pequenas merdas te fode a tal ponto que você fica fodido de verde e amarelo.
E não é só nisso. São 26 páginas onde se comenta todas as formas como o sistema pode te foder e tudo que você pode fazer (legalmente ou não) para dar seus pulos e sobreviver para seguir adiante e, talvez, conseguir o que você deseja. Em especial, a sessão de #LIFEHACKS é muito divertida, com tudo o que você pode fazer para se virar, de tentar escavar lixo corporativo por peças para vender no eBay como relíquia a coisas bem menos bacanas.
Mas é assim que é a vida de um fodido, e #iHunters em geral são fodidos.
Em uma outra sessão, é falado sobre a parte do programa #iHunt, e sobre como o próprio app te fode (sim… Lembre-se, você é um fodido. De outra forma, não estaria caçando monstros para complementar renda)
A primeira coisa: no mundo de #iHunt, monstros sempre existiram. As pessoas apenas são mais educadas para ignorar coisas estranhas. Afinal de contas, se tem um cara meio acabado em uma cracolândia, o que é mais fácil acreditar?
- Ele é um cracudo que escolheu isso?
- Uma súcubo o drenou sexualmente e o viciou a ponto de ele ir parar nas ruas?
O #iHunt é um típico fruto da tecnologia da Web 3.0: mobile first (ou seja, depende de celular como o WhatsApp ou o Uber), viu um problema e resolveu-o por meio de um aplicativo. Mas quem está por trás da empresa #iHunt? Monstros tentando eliminar a escumalha sem sujar suas mãos? Caçadores utilizando o mesmo como prospecção? Ambos? Nenhum? Apenas alguém tentando fazer dinheiro em cima de um problema? Um Elon Musk da caçada dos monstros? Qual é a verdade? Elas são excludentes?
Basicamente, o #iHunt é tipo um Tinder ou Uber da caçada de monstros e funciona assim:
- Alguém posta um pedido de caçada: não necessariamente matar, mas em geral é eliminar um problema. Ele define um preço pelo serviço e os algoritmos do #iHunt (sempre eles) definem qual é a dificuldade geral do alvo
- Um #iHunter pode aceitar ou não o serviço, basta arrastar para a direita para aceitar ou para a esquerda para negar. Uma vez aceito, o #iHunter pode interagir com o cliente para tentar obter maiores detalhes e dar parecer do que está acontecendo. Se o negar, aquela caçada não aparece mais na sua lista (imaginando que o algoritmo não endoide);
- Uma vez que o #iHunter cumpra o serviço, uma selfie é enviada comprovando ao cliente que o serviço foi feito
- O cliente avalia o serviço e dá uma nota ao #iHunter. Notas baixas pode resultar em descontos oferecidos pela plataforma (e descontados do valor do #iHunter) e o pagamento é efetuado.
- O #iHunter tem seu valor final creditado pela plataforma, após cobrada a taxa do aplicativo
E só por aí você pode perceber o tanto de merda que pode acontecer: alvos mal-avaliados, clientes insatisfeitos, clientes pegajosos, algoritmos falhando e dando o mesmo serviço para vários #iHunters, bancos que não aceitam os depósitos…
Tudo para te foder, óbvio.
Para ajudar, o #iHunt não aceita que #iHunters negociem valores por fora: isso pode levar ao encerramento da sua conta no serviço por violação dos termos de uso do aplicativo: sim, as porras das letras miúdas da EULA que ninguém lê.
E eles não se envolvem com grupos caçadores de monstros que já existam. Sim, eles existem e, sim, eles não são tão fodidos quanto você, tendo mais equipamento e conhecimento e experiência e treinamento de séculos caçando monstros. Algumas vezes eles podem te contratar via #iHunt para dar uma aliviada nos mais chinfrim e deixar o grande boss (que provavelmente vale muito dinheiro e tem uma caçada só para ele no #iHunt) para eles. Eles podem ver você e decidir te trazer para dentro dos seus números, com a vantagem de ter alguns benefícios melhores, até mesmo incluindo planos de saúde. Ou eles podem ficar muito putos porque você, um fodido qualquer, tá caçando a caça deles…
E claro que existem apps para resolver o problema do #iHunt (afinal, there’s an app for that, sempre tem uma app para resolver tudo), desde um esquema atrelado ao #iHunt para caso um lobisomem te estripe e você precise que alguém faça seus órgão internos voltarem a ser internos sem muitas perguntas, até mesmo um sistema de armazenamento em nuvem onde você vai postar aquela cópia de O Rei em Amarelo em PDF que você pegou com seu colega Phooey: nunca se sabe quando precisará desenhar o Símbolo Antigo. Sempre sem muitas perguntas, desde que a grana flua.
O Trampo
A cidade de San Genaro é a típica cidade do Vale do Sílicio fictícia com monstros. É como se a Beauchamps de True Blood fosse teletransportada para o sul da California e ao invés de hamburgeres e comida cajun você tivesse comida vegana e café de grãos cagados por passarinhos (eu sei, está ficando chata essa piada… Vai acabar logo). Se você jogou GTA, deve estar entendendo o clima, mas troque o crime por caçada de monstros. O cenário é bem detalhado, em sua opulência decadente e seu realismo com tapa na cara… De repente, o cracudo na rua era um #iHunter foda até ter seu cérebro transformado em geleia por vício em mordidas de vampiro, que ele tenta enganar com crack.
No caso, uma coisa interessante que #iHunt oferece é um gerador automático de Trampos (gigs), onde você pode gerar aleatoriamente todas as coisas que podem acontecer no trampo e as merdas que podem dar disso. Afinal, de repente você foi mandado para matar um vampiro, mas na verdade ele é bacana e o apenas quer proteger uma galera em uma região que é alvo de uma tentativa de gentrificação por parte do cliente… E aí?
E para aumentar ainda mais as incertezas, o #iHunt adiciona um novo mecanismo aos Aspectos que é Arriscar os Aspectos (imperish). Ao arrisca um Aspecto, além de oferecer 1 PD, o Narrador (ou quem o fizer, já que jogadores podem Arriscar Aspectos de NPCs) oferece duas escolhas potencialmente ruins. Tipo: você tá inundado de gasolina e o Monstro quer te matar, bebendo seu sangue. E aí? Você pode Arriscas um Aspecto Vivo por tempo demais para morrer do mesmo para impor um dilema: vai tentar a morder e com isso virar cinzas, ou vai fugir e deixar ela fugir. A parte importante é que ambas as escolhas são potencialmente ruins. Além disso, existem limites para usar isso: o Narrador pode usar apenas uma vez durante uma cena e contra apenas um PC. PCs só podem o fazer se, durante a cena, sofrerem uma consequência moderada ou pior.
Selfies - as cicatrizes de batalha dos #iHunters
Lembra-se que a caçada só é paga quando você envia uma selfie para o servidor e o cliente aprova? Em #iHunt sugere-se que isso se replique nas fichas de personagem. Cada marco do personagem gera uma selfie que, além de prover os efeitos tradicionais dos marcos, geram pseudo-Aspectos chamados callbacks. Cada callback permite que você tenha um determinado nível de benefício sempre que invocar eles for relevantes:
- Marcos menores geram Clima maneiro que você pode usar, uma vez por episódio (sessão), aumentar em +1 um rolamento.
Stella possui o Clima Maneiro “Uma vez mais celebramos mandar um sanguessuga para a vala”. Ela está caçando outro vampiro e lembra todas as discussões que ela e Helena, sua parceira (em todos os sentidos) tiveram enquanto estavam comemorando a caçada bem-sucedida em uma rave ao som de Daft Punk. Ela recebe +1 no rolamento para tentar localizar o vampiro
- Marcos significativos geram Grandes Negócios, que você pode invocar como um Aspecto uma vez por sessão
Mikaela está pesquisando uns livros de ocultismo para encontrar informações sobre um demônio enquanto ouvindo “Bibbity-Bobbity Boo”, que é o nome de um Grande negócio onde, loucura loucura, ela descobriu em uma de suas primeiras caçadas que poderia usar magia graças a um demônio que na prática era apenas uma fada madrinha estabelecida em um barrio em San Genaro. Ela lembra que louco foi sentar o “Bibbity-Bobbity Boo” na cara do babaca do cliente, e ainda ganhar uma grana com isso, já que o lazarento era ele próprio um demônio. Agora ela é uma aprendiz de fada madrinha e tem seu próprio negócio de personagens vivos! Isso a ajuda a se focar na investigação: afinal de contas, aquela roupa da Cinderela não está barata.
- Marcos Maiores geram Eventos Que Mudam Vidas, que você pode usar quando quiser, como se fosse um Aspecto seu, incluindo para ser Forçado ou ter o Mesmo Arriscado. Além disso, ele tem uma invocação gratuita, além dos benefícios normais, você pode usar o dado de Vantagem como se você estivesse com ele… Na realidade você não a tem, mas é como se a tivesse
Sergio possui um Evento que Mudou Sua Vida chamado O Incêndio da Escola St. Clerance, quando ele ao tentar expulsar um demônio acabou provocando um incêndio (chamas vindas do Inferno, cacete!) que resultou na morte de uma garota. Ele ainda se culpa um pouco, quando ele está caçando um lazarento de um fodido de um Faminto que além de tudo é um estuprador de crianças que por acaso trabalha para alguns vampiros da cidade, “amaciando” as crianças e quebrando sua resistência para que os mesmos possam satisfazer com elas sua sede de sangue, as “pegando de volta” quando não servem mais para saciar sua própria fome. Ele descobre tudo e olha, com sangue nos olhos para ele e fala: “Já mandei gente para o inferno por bem menos. Mandar um corno que nem você vai ser um prazer. A grana do #iHunt é só um bônus.” ele diz, lembrando daquela criança cuja vida ele meio que vive por tabela
No #iHunt é sugerido que você mantenha um álbum de fotos com coisas relacionadas aos callbacks, literalmente selfies representando tais Marcos. Até mesmo você pode ir mais longe e estabelecer uma conta em rede social sobre seu personagem, ligada a de outros personagens. O céu é o limite.
Conclusão
#iHunt é sobre gente fodida com opções de menos e com problemas demais. Pode parecer depressivo, mas pode ser bem mais interessante do que aparenta. É um material extremamente bom, uma das surpresas do final de 2019.
#iHunt tem um texto caustico e muito agridoce em muitos momentos. Ele serve para lembrar algumas coisas amargas das maravilhas que a tecnologia e o capitalismo tardio “trouxeram”, sobre como nossos cafés de grãos cagados por passarinhos (juro, é a última vez que vão ouvir essa) acabam resultando em toda uma economia que basicamente é um grande moedor de carne humana, onde certas carnes são mais baratas que outras.
Claro, você pode usar #iHunt para fazer seu tipo jogo de “vamos matar o monstro da semana”, mas isso faz com que muito do tempero que torna #iHunt realmente divertido se perca. Existe muito pouco em regras que te obrigue a reforçar essa situação de ser um fodido, mas por outro lado o jogo perde um pouco do seu tom e fica meio comum, além de ingênuo.
A ideia de que os monstros não são o maior problema não é exatamente nova, sendo um tropo da Fantasia Urbana. Mas aqui a coisa fica interessante por você não conseguir dizer que exista alguém bom ou mal. Às vezes, você vai precisar matar aquela fada que protegia o parque onde uns sem-teto moravam em caixotes. Foda-se que as construtoras vão destruir tudo depois para construir mais um prédio para Faria Limers. Você precisa comprar o remédio para fibromialgia agora, não daqui a seis meses.
Não é um jogo para fracos de coração: você é um fodido e sabe disso. Você tem escolhas pesadas a fazer. Às vezes o que você precisa para espantar alguns diabretes faz várias vezes mais dinheiro no eBay. Algumas vezes, eliminar o monstro só quer dizer que outro ainda pior entra no lugar. Às vezes, nem quem ganhar ou perder vai ganhar ou perder, vai todo mundo perder.
O texto de #iHunt, como dito é caustico e agridoce, mas ao mesmo tempo cheio de um humor memético típico dos millenials, com seus rolamentos resultando em valores de 10-30 pontos de tensão (procurem pela meme 10-30), com uma fluidez sólida e em vários momentos angustiante. O capítulo #THINKINGPOOR é um dos maiores tapas na cara que alguém pode receber ao ler um jogo de RPG.
A diagramação é linda: definitivamente é um dos livros mais belos para Fate que já vi, senão o mais belo. Ao invés de muitas artes, os autores utilizaram imagens de arquivo de imagens em Creative Commons ou com custo baixo e royalty-free para gerar uma diagramação bacana e enfatizada na ideia que que você é alguém que está vivendo em um tempo em que, ao mesmo tempo que se tem tudo, não se tem nada.
Esse é um livro que não consigo pensar em uma falha. É um jogo redondo, bem planejado, onde mesmo opções que não me seriam queridas (como o uso de 1d6 para a Vantagem) se mostram efetivas em game design. Talvez o ponto mais fraco seja o fato de que Monstros não são facilmente criados: não é difícil, mas precisaria daquele momento do comercial onde a galera come uma pizza e dá uma despressurizada de uma cena mais tensa (que pode potencialmente ter gatilhado um jogador) para você preparar o bicho. Os monstros de exemplo, porém, podem ser facilmente adaptados para o que você precisa.
Até a descrição do aplicativo do #iHunt e das falhas que o algoritmo do mesmo pode provocar e toda a questão envolvendo você receber (ou não) pela caçada é envolvente. Ele tem detalhes o bastante para deixar o cenário crível e realista, e buracos o bastante para se explorar todo o tipo de temática.
Eu dou um 5/5 sem muito medo para #iHunt, por sua capacidade de ser um produto bem acabado e bonito, cuja talvez sua única desvantagem seja estar em inglês.
Para quem quiser matar uns monstros e ficar um pouco menos fodido com um dinheiro extra…
É só deslizar para a direita em #iHunt!
12 Mar 2020
Publicado previamente no site da Dungeon Geek
Nota: Essa resenha está sendo feita baseada no Prototype Edition, a versão “apenas texto” do livro, portanto não serão considerados detalhes de diagramação.
O Início
Uma verdade inconveniente sobre o RPG: os jogos e o ambiente dos jogos tendem a ser extremamente capacitistas. Devido à sua origem em jogos de guerra, a maior parte do tempo quase todo tipo de (na falta de termo melhor) deficiência é tratada de maneira negativa. Desde a perda de CA por cegueira ao famoso “Kit do Psicopata Feliz” de GURPS (comprar as desvantagens Fúria, Sadismo e Sanguinolência), situações de neuro-atipicidade ou condições diferenciadas em termos físicos são tratadas invariavelmente como desvantagens.
Isso, mais o fato de serem jogos que recorrem muito ao visual (fichas e tudo o mais) e à fala, tornam o RPG infelizmente um jogo ainda muito hostil a pessoas que tenham qualquer divergência em relação ao “padrão” social, seja em termos físicos (quantas lojas de RPG possuem acesso facilitado a cadeirantes?) seja em termos mentais (conseguimos lidar bem com jogadores que tenham hipersensibilidades, como Autistas?).
Existem algumas boas iniciativas recentes para tentar melhorar esse cenário: coisas como o DOTS Project que procura criar dados para RPG em braille ou com cores que os tornem mais acessíveis a daltônicos; o jogo Amigo Dragão (em financiamento durante o período em que esse artigo está sendo escrito), desenvolvido pelo Tiago Junges para ajudar a sua filha que é autista a interagir por meio do jogo, são algumas entre várias iniciativas, mas ainda assim esparsas e individuais.
Foi quando, Fred Hick e Rob Donoghue foram apresentados por Shoshana Kessock a Elsa Sjunneson-Henry, uma jogadora de RPGs cega, surda e com Estresse Pós-Traumático (como dito no próprio livro). Sua experiência com os jogos de RPG era a de desbravar um ambiente hostil: não apenas para personagens, mas também para jogadores, fora do padrão social. E ela veio com a ideia de como criar um jogo mais acolhedor a jogadores e personagens com algum tipo de diferença física ou mental em relação ao padrão. E ele deu o aval.
Entretanto, devido a questões econômicas, a Evil Hat se viu em dificuldades: o recente cancelamento da linha dos World of Adventure, além de uma série de atrasos em seus produtos, foram provocados por essas dificuldades.
A aposta da Evil Hat foi em começar a publicar os materiais de maneira um pouco mais crua: os Prototype Edition, edições com o conteúdo de texto, mas sem as imagens. Essas vendas iniciais são usadas para financiar as artes dos mesmos, com o compromisso de, tão logo a diagramação final estar pronta, a pessoa receberá o documento final.
A iniciativa deu muito certo com o Space Toolkit (o guia Espacial), e isso ajudou eles a colocar esse módulo adiante.
As barreiras
Na introdução ao Fate Accessibility Toolkit (vamos usar a sigla sugerida FAcT para facilitar), Elsa explica que começou a se envolver nos jogos por meio de LARPs. Como ela menciona no livro:
“It didn’t matter that I was Sherlock and I was blind. It didn’t matter that I was a hardcore dragon fighting princess and deaf. No one cared if I had a heart condition and wanted to be an epic hero.”
“Não importava se eu era cega, eu era Sherlock. Não importava se eu era surda, eu era uma Princesa Dragão Lutadora durona. Ninguém ligava se eu tinha uma condição coronária e queria ser um herói épico.”
Foi quando ela encontrou os RPGs… E começaram as restrições: como explorar as condições que ela tinha de uma maneira interessante em jogos cujas regras não previam tais situações, ou pior, as previam como um redutor na capacidade? Como criar personagens como ela em cenários e jogos que não previam isso?
E ela começou a tentar resolver o problema, criando personagens. O problema é que na maioria dos jogos, isso não é intuitivo, as ferramentas para traduzir as coisas não estão lá: no máximo, são tratadas como desvantagens e formas mais rápidas de perder-se o personagem. Afinal, como lidar com cadeiras de rodas quando as regras não as inclui? No final, elas são veículos e deveriam ser tratadas como tal.
E nesse ponto Fate chamou a atenção dela, já que é um jogo onde se “deve tratar os personagens como pessoas competentes, dignas dos riscos e desafios lançados a eles.” (Fate Básico, página 16) Você pode fazer coisas sem que ninguém diga que você não pode. Personagens não são estatísticas em um jogo que é muito mais gramático que matemático (enfase do autor do artigo). Eles são competentes e sabem como fazer seu caminho no mundo, seja como o Demolidor ou a Oráculo. Por que então os jogos tratam condições como essas como desvantagens?
A ideia por trás do FAcT é vencer essas barreiras: é tratar coisas como depressão, bipolaridade ou Estresse Pós-Traumático como mais que uma mecânica para horror lovecraftiano. É um livro para incluir aqueles que antes eram apenas estatística negativa.
E por que simplesmente não jogar com um personagem capaz, por assim dizer?
Por que, na prática, uma pessoa com o que uma pessoa capaz, por assim dizer (como o autor desse), diria ser um problema na verdade não se vê (ou não deveria) como alguém com um problema. Aquilo não é um problema, é parte dela. E é curiosamente uma minoria à qual uma pessoa pode entrar a qualquer momento: pense, por exemplo, em Marcelo Rubens Paiva. Ou melhor, leia Feliz Ano Velho e Ainda Estou Aqui.
Pode acontecer de um belo dia algo acontecer e você se ver, por exemplo, tendo que reaprender a usar um computador ou celular com recursos de acessibilidade como o Talkback, ou algo similar, tendo que se adaptar a uma nova realidade, a um novo corpo, por assim dizer. Isso passa a ser parte de você. E por isso, em alguns casos, pessoas em tal situação não querem ser “curadas”: alguns simplesmente não podem, outros não se preocupam com o fato de não serem conformes ao padrões sociais. Sem falar que muitas vezes isso foca-se na realidade não em melhorar a qualidade de vida de tal pessoa, mas na das pessoas ao redor dela.
O Começo do Caminho
Uma coisa importante: FAcT, assim como todas as Caixas de Ferramentas do Fate (as Ferramentas de Sistemas, Adversary, Horror, Space), não é algo pronto para ser usado direto da caixa. É um conjunto de recursos a serem usados pelo Narrador, e portanto demandam tempo e discrição em serem estudados e compreendidos antes de serem usados.
Além disso, ele nem chega a ser uma explicação profunda: embora existam muitos detalhes interessantes (não sabia que existem 200 formas diferentes de Nanismo conhecidas), elas não chegam sequer a arranhar a coisa toda. Portanto, você, seja como narrador ou jogador, precisará fazer sua lição de casa e, ao criar um personagem com alguma situação, entender de maneira mais profunda. Nem todo cego é o Demolidor, nem todo depressivo é a Tristeza de Divertida Mente (para usar expressões mais “comuns”).
Outra coisa importante: esse livro foi escrito por quem vive todos os dias com isso. Elsa, Fred, Rob e a equipe da Evil Hat tomou o cuidado de procurar pessoas com todos os tipos de situações neuro-atípicas e de outra forma não-conformes para falar de seus pontos de vista sobre tais condições.
Infelizmente isso quer dizer que algumas situações não são mencionadas, como algumas formas de condições mentais, epilepsia, problemas de desenvolvimento intelectual, etc… Importante, ao ler o FAcT, entender que essas são vozes de pessoas que passam por esse tipo de condição e que participam do hobby do RPG. Vozes que merecem ser ouvidas e que muitas vezes não o são.
Sobre dizer Não
A primeira coisa que vemos é um compromisso que a Evil Hat tem a muito tempo: não lidar com nada que não possa ser lidado de maneira respeitosa, e ao o fazer não o fazer com o objetivo de prejudicar algo ou alguém.
Para quem leu minhas resenhas de outros materiais da Evil Hat, é o mesmo compromisso que é feito no Horror Toolkit, sobre Horror não dar direito a ser horrível, ou em Shadow of the Century, onde você não precisa trazer para o jogo tudo dos anos 80: você pode deixar o racismo, machismo, xenofobia e homofobia lá, trazendo apenas as partes divertidas, como os ternos de ombreira, keytars, De Loreans, boomboxes, cabelos extravagantes e leques (Marcha, Ibiza, Locomia).
A ideia é: se alguém não está se divertindo, está errado. Se você cria um elemento de jogo que incomoda alguém por causa de uma condição, ao invés de dizer pura e simplesmente Não para a pessoa ou para o elemento, trate isso como uma oportunidade de crescimento. Ela não está normalmente pura e simplesmente impedindo aquilo: ela apenas quer ser ouvida. Ouça-a e ajuste conforme a necessidade.
O objetivo é a diversão: se algo que você trouxe está impedindo todos de se divertirem, você está atrapalhando a diversão e a mesa tem o direito de dizer não para aquilo. Não é errado fazer ajustes finos para chegar em um ponto onde todos se divirtam. Não se mantenha atado a clichês tóxicos: deixe o capacitismo para trás. Mesmo que isso seja não fazer as coisas como antes.
O que não te contaram sobre Acessibilidade
Essa lista é importante de rever e vou copiar praticamente as is do FAcT, por ser necessário e primordial para entender o que ele traz (lembrando que uso o termo deficiência como um termo comumente usado):
- Nem toda pessoa com alguma deficiência deseja ser curada
- Nem sempre dá para se curar uma deficiência
- Binarismo em deficiências é uma ilusão: a maior parte das deficiências não são oito ou oitenta, vindo em escalas.
- Dispositivos de Acessibilidade são ferramentas, não brinquedos
- A deficiência não é toda a sua identidade, ainda que possa ser algo importante. Você pode ser um cego judeu, ou uma pessoa de cor cadeirante, ou uma mulher com bipolaridade, ou um homem trans autista… ou qualquer outra coisa. Pessoas com deficiência são pessoas complexas, como qualquer outra.
- Dor é um conceito relativo: certas dores podem ser simplesmente ignoradas se você as sente o tempo todo
- Deficiências não são caixinhas: elas variam de pessoa para pessoa. Mesmo pessoas que tenham o mesmo tipo de deficiência podem lidar com ela de formas diferentes.
- Nem toda deficiência é visível: algumas podem não ser vistas, mas ainda poderem influenciar a vida da pessoa. Pense em pessoas diagnosticadas como autistas.
Até o cuidado ao falar sobre tais condições deve ser considerado: alguns preferem a ideia de “pessoa primeiro, condição depois”, como em pessoas cadeirantes. Outras pensam em uma ideia de que aquela condição é definidora delas, como em cego. Isso não é um detalhe: algumas preferem a primeira por terem tornado-se cadeirantes durante sua vida. Outras podem preferir se referir como cadeirante de maneira geral pois (em teoria) nunca conheceram outra forma de se enxergarem: elas sempre se viram assim por alguma razão.
Aspectos não são positivos ou negativos, eles SÃO!
Essa é uma frase que sempre costumo dizer ao mencionar Aspectos, e aqui isso é mais de oito mil vezes mais importante ao mencionarmos situações de deficiência.
Lembre-se sempre que bons Aspectos dizem mais do que uma coisa só. Dizer, por exemplo, que um personagem é Cego é um tanto genérico, enquanto dizer sobre um Combatente contra o Crime Cego é algo muito mais interessante (que o diga o Demolidor). Dizer que o personagem tem Transtorno de Múltipla Personalidade não é tão legal, mas uma Agente contra o Mal com Transtorno de Múltipla Personalidade como a Crazy Jane de Patrulha do Destino é muito mais interessante.
Ao usar Aspectos desse modo, em especial ao os Forçar, não o faça de modo a tornar a restrição algo que simplesmente vai remover o personagem do caminho: não Force o Aspecto do Hacker Cadeirante para impedí-lo de subir pela Escada de Incêndio e tirar-lhe a chance de participar da ação. Faça isso para que ele suba pelo elevador e chame atenção desnecessária para o grupo, mas de modo que ele chegue aonde o resto do grupo vai estar (talvez depois de espancar alguns capangas com o Taser embutido na cadeira de rodas). Use tais Forçadas para abrir novos caminhos de história que podem se tornar interessantes: e se o Hacker Cadeirante usar uma estação de trabalho da contabilidade para acessar os Arquivos Secretos da Megacorp? Será que não chamaria a atenção? De repente…
E lembre-se: personagens de Fate com Deficiência são pessoas antes de serem deficientes (me perdoem novamente por esse termo). Elas são parte da ação por resolverem problemas, não apenas por superarem deficiências. Evite a Narrativa de Superação, isso não é nada divertido (exceto se, e MUITO SE, a premissa do jogo, combinada entre todos, envolver TAMBÉM essa superação).
Faça a lição de casa
Em seguida FAcT lista algumas linhas gerais sobre como lidar com todo tipo de condições fora do padrão. Isso se deve, como dito anteriormente, que FAcT não tem como cobrir todas as bases, até porque existem todo um universo de condições fora do socialmente convencionado (lembre-se: 200 formas diferentes de Nanismo!).
O resumo dessa sessão, não importa se é sobre criar personagens ou trazer jogadores com condições assim é simples:
FAÇA SUA LIÇÃO DE CASA!!!!
Não trate tais condições como piada ou estereótipo: não precisamos de mais Palhaços do Crime, ou dos Gênios Cadeirantes, já os temos em suficiente.
Isso é especialmente relevante com a questão das condições mentais: estereótipos como o do super-gênio autista ou com Transtorno Obsessivo Compulsivo já foram requentados à exaustão. O mesmo vale para os sanatórios mentais abandonados, com quartos com paredes cheias de escritos perturbadores feitos com excrementos e coisas do gênero.
Outra coisa, e algo que pode acontecer com facilidade se você não se cuidar: não diagnostique seus jogadores. Não importa quanta pesquisa você faça na Internet, você não é gabaritado para isso (a não ser que você seja REALMENTE gabaritado para isso). Você pode, legitimamente, pedir para um amigo de mesa que você suspeite que tenha alguma condição procurar ajuda especializada (na verdade, você deveria) mas você não deve tentar Diagnosticar.
Você só é um Narrador de RPG, deixe isso para profissionais especializados.
Como uma sugestão para, por assim dizer, tirar a galhofa do horror e dos jogos que lidam com insanidade, uma sugestão é adotar-se o sistema de Ganchos: ao criar o personagem, ao invés de usar o Trio de Fases, faça cada jogador definir 1 a 3 Ganchos, Aspectos relacionados a coisas que mantém o personagem ligado a coisas que o mantém longe do horror. Quando o personagem se vir em uma situação em que deseja melhorar suas chances mas não tem como (por falta de PDs ou não possuir Aspectos relevantes), ele pode Arriscar um Gancho: ele recebe o mesmo benefícios de Invocar um Aspecto, mas se ele for bem-sucedido, ele deve reescrever tal Gancho ao fim da cena, em algo relativo ao contexto do jogo. Caso falhe, nada acontece. Um personagem só pode Arriscar um mesmo gancho uma vez por rolamento.
Emma possui um Gancho Seguidora de Nossa Senhora de Fátima em um jogo de Horror. Ela vê diante de si um cultista que está tentando sequestrar crianças que ela está protegendo. Ela não possui Aspectos relevantes para melhorar suas chances de matar o cultista com o rifle que Jack, o policial, deu para ela. Ela decide então Arriscar esse Gancho para melhorar seu Ataque em +2. Isso é o suficiente para acabar com o cultista, mas… Ao preço de reescrever esse Aspecto. Quem sabe agora Emma, coberta de sangue, não se veja como A Mão Esquerda de Deus, ou imagine que O Mal Vence quando os bons nada fazem.
Criando personagens
Uma coisa também importante é que personagens com deficiência não estão impedidos de pegarem perícias. Um cadeirante pode ter Atletismo, representando sua habilidade em Cadeira de Rodas (quem sabe ele não é o Cadeirante Mais Radical dos X-Games?). Alguém com, por exemplo, Autismo, pode até mesmo ter Percepção muito alta: sua hipersensibilidade a tudo pode o tornar mais sensível a notar coisas que saiam do padrão, como aquele sniper no alto do prédio.
Ao elaborar Façanhas, pense também mais no que o personagem PODE fazer do que no que ele NÃO PODE fazer: o Cadeirante Mais Radical dos X-Games pode ter um Momentos Déjà-vu da Cadeira de Roda que, sempre que ele precisar Criar Vantagens por Atletismo demonstrando suas habilidades, ele recebe +2 se puder descrever como ele desce de uma maneira praticamente impossível uma ladeira ou coisa do gênero. Já nosso Autista poderia ter uma Façanha Falso! Falso! que permite a ele somar +2 para Superar usando Conhecimentos ao perceber detalhes sutis mas precisos que permitam a ele identificar obras falsas.
Pense também em Extras que envolvam os elementos que o personagem tem que usar cotidianamente, como dispositivos de acessibilidade. Se você já é o Cadeirante Mais Radical dos X-Games, por que não incluir um Dispositivo de Tirolesa à sua Cadeira de Rodas que permita você deslocar-se de um ponto a outro que você normalmente não poderia, desde que consiga antes realizar um teste de Conhecimento para preparar o Dispositivo? Isso pode ser até bem legal não apenas para você, mas para seus amigos personagens, quando os ninjas estiverem correndo atrás deles!
Por fim, é interessante que personagens assim tenham certas Condições especiais que eles possam marcar em momentos específico. Se você é o Cadeirante Mais Radical dos X-Games, parece meio óbvio que ocasionalmente você fique Sem Seu Dispositivo, ou que possa ficar Cansado de empurrar sua cadeira de rodas… Falaremos um pouco mais sobre isso adiante.
Uma sessão meio curta, até porque o narrador pode usar muitas das informações das demais sessões para ajudar, ela enfatiza a necessidade de fazer seu dever de casa: se você tem um jogador que tem deficiências visuais, talvez compense gastar um tempo enviando a ficha dele via Internet para que ele use um leitor de tela (de preferência em um formato compatível) ou que você desenvolva uma ficha em tamanho apropriado para que ele consiga ler as informações na mesma.
Além disso, procure tornar acessível o jogo: se você tem um jogador que é Surdo, talvez seja legal que você se posicione de tal modo que ele consiga fazer leitura labial e/ou consiga se comunicar em Libras com ele, ou colocar ele mais perto de você na mesa de modo que o dispositivo coclear dele fique mais próximo e capte melhor a sua voz e assim por diante.
Uma parte interessante mas que infelizmente não é muito útil no Brasil é que no livro ele trás uma série de gestos básicos para narrar-se Fate com jogadores que compreendam a ASL (American Signal Language). Infelizmente, existem algumas diferenças entre ela e a Libras (Linguagem Brasileira de Sinais) que torna isso infelizmente um pouco inútil.
Acima de tudo, a ideia é que você deve fazer sua lição de casa e tornar sua mesa acessível.
Além disso, verifique como jogadores que você tenha em mesa com tais condições preferem ser lidos: existem, como dito, aqueles que se enxergam como pessoa primeiro, condição depois, e existem aqueles que se definem primeiro pela condição. Além disso, tome muito cuidado com as palavras ao se referir a tais condições: eu mesmo estou me preocupando e evitando usar termos como deficiência ou necessidade especial, pois sei que tais termos podem ser agressivos a certa pessoas. Com certeza, enquanto alguém razoavelmente comum e “normal” (apenas tenho um grau meio alto de óculos), vou errar, e espero que qualquer pessoa que acredite que tenha algo a me corrigir nesse quesito me procure para que eu possa melhorar.
Por fim, como envolver condições como as tratadas em FAcT pode ter potencial sério para gatilhos, em especial em jogadores que possuem tais condições, o FAcT volta ao tema da Mesa Segura, mencionando os velhos conhecidos Controle Remoto e Carta X. Além disso, pode ser interessante utilizar mecanismos de Trigger Warning prévios para deixar claro que pode acontecer certas temáticas e debater com os jogadores até que ponto (se for o caso) pode-se ir.
FAcT trás também o conceito de “all access gaming”, jogo para todos. Envolve mais uma filosofia e princípio que regras: é a ideia de tentar tornar mais acessível PARA TODOS a experiência. Várias condições possuem problemas em espaços onde jogos ocorrem: cadeirantes podem ter problemas para entrar, cegos e pessoas com baixa visão podem não conseguir ler as fichas, e uma que não pensamos muito: pessoas surdas podem não conseguir participar devido ao fato de não conseguirem ouvir ou falar!
Para isso, FAcT faz uma série de sugestões de como lidar com isso, como criar um espaço em um evento onde pessoas surdez possam ser atendidas por narradores e staff preparados para tal, acesso facilitado a cadeirantes, etc… Claramente é bastante provável que você vai errar, mas a preocupação e o desejo e esforço de melhorar devem estar sempre presente.
Entrando no mundo das Condições
OK…
Dito tudo isso, chegamos às condições per se e seu uso em Fate (e em outros jogos).
Primeiramente, esqueça a ideia do “Kit do Psicopata Feliz!” A ideia aqui é que você faça personagens interessantes, não os trate como bônus ou regras.
Primeiramente, ele dá uma ideia do que pensar ao incluir uma condição como essas a seu personagem, sendo tal modelo expansível a todo tipo de situação ou condição fora do padrão social que não tenha sido atendida no FAcT: em especial, as questões de gênero foram uma baixa complicada, mas isso deve-se ao princípio do FAcT de colocar pessoas com tais condições falando sobre elas. Mesmo assim, tal gabarito é bem versátil e pode ser usado para quem queira de repente expandir.
Algumas das questões são:
- Como o personagem obteve tal condição?
- Que tipo de dispositivos de Acessibilidade ele usa? O que ele tentou e não funcionou?
- Ele é totalmente daquela condição (cegueira, surdez) ou ele tem uma gradação da mesma (baixa visão, não ouve volumes baixos)
- Como é a relação do personagem com tal condição? Como ele lida com as pessoas que o questiona sobre a mesma?
Lembre-se que nem toda condição é adquirida de maneira trágica, ao estilo Alessandro Zanardi: algumas são de nascença (cegueira costuma ser uma delas) e outras podem vir da idade (surdez é bem comum em pessoas idosas).
Cada uma das sessões citadas em FAcT representa um espectro de condições e dicas de como lidar com as mesmas, que seguem um molde específico:
- Uma introdução à condição com comentários sobre detalhes normalmente desconhecidos, como a já citada questão das 200 formas diferentes de nanismo e da diferença entre cegueira total e baixa visão (que pode ser considerada Cegueira Legal, como no Brasil)
- Como trabalhar aquela Condição em Forma de Aspectos: a sugestão geral é refletir em duas vertentes, pelo como a condição restringe o personagem (Que diabo é isso de visão periférica?) ou no que a pessoa é capaz de fazer (Precisão rítmica total)
- A relação entre Perícias e Condição. Por exemplo, um personagem totalmente cego pode ter Percepção, mas ele usa algumas formas de ecolocalização no lugar da visão;
- A relação entre as Condições e Façanhas. Lembre-se que Façanhas são sempre positivas em circunstancias especiais. Pense, por exemplo, em um personagem cego que tenha uma Bengala com Taser que, além de dar +2 no Ataque, em caso de Sucesso com Estilo possa reduzir o Estresse em 1 para provocar o Estresse direto nas Consequências… Esse não seria um “ceguinho comum”
- Condições para as suas condições. Essa regra especial é usada para indicar situações que podem complicar a vida dele por causa de sua condição. Um Autista, por exemplo, pode Colapsar diante de uma sobrecarga de estímulos visuais, ou um cadeirante pode se ver Sem o meu dispositivo depois de ser atacado por alguns ladrões que roubem sua cadeira de rodas.
- Conselhos para o Narradores e Jogadores criarem personagens com tais condições e sobre como pensar tais condições em jogo. Para os Narradores também é incluído algumas dicas para criar-se Antagonistas com tais condições
As condições citadas no FAcT são:
- Cegueira: incluindo também coisas como baixa visão, perda de campo, perda de visão de profundidade e sobre o uso de óculos, em especial para graus muito pesados, além de Daltonismo e outras faltas de sensibilidade de cores, como a acromatopsia
- Surdez: inclui aí a surdez (em minuscula) para aqueles que recorrem ao uso de dispositivos cocleares, leitura labial e afins, além de falar), a Surdez (em maiúscula), para aqueles que apenas utilizam linguagem de sinais e as pessoas Duro de Ouvido (que tem problemas para ouvir volumes ou frequências específicas). Além disso, fala sobre a “cultura ouvinte” (ou seja, a ideia da normatividade na capacidade de ouvir), que acaba se aplicando a outras condições, e sobre porque você não deve fingir usar uma “linguagem de sinais” estilo Pig Latin ou Engrish, além da questão sobre as diferenças culturais envolvendo as múltiplas linguagens de sinais
- Problemas de Mobilidade: as questões envolvendo cadeiras de rodas, muletas e similares, e como é legal transformar em sua muleta normal em uma Muleta de Estoque, embutindo uma lâmina na mesma!
- Nanismo: aqui fui surpreendido, pois além da já citada questão das mais de 200 formas de nanismo, tem também detalhes sobre Nanismo Proporcional vs Nanismo Desproporcional, e coisas como a reposição hormonal quando necessário e as consequências de sua supressão. Ah, e evite os tropos do Anão/Fadinha/Elfo/Hobbit… Tyrion Lannister tá aí para mostrar que pessoas ananas podem também serem duronas e significativas.
- Doenças Crônicas: aqui, assim como nas Questões de Mobilidade inclui-se uma gama extremamente grande de condições, indo de coisas como Diabetes e Anemia Falciforme a Doença de Crohm e Osteogenese Imperfeita (uma forma de Doença dos Ossos de Vidro) ou Analgesia Congênita (não sentir dor de forma nenhuma).
- Espectro Autista: uma das mais comumente estereotipadas condições, essa sessão é especialmente interessante pois mostra que uma das coisas normalmente não apresentadas, a dificuldade de processamento sensorial de um personagem, pode não necessariamente ser algo ruim: pense no exemplo que citamos da pessoa que seja hipersensível a detalhes em imagens. Isso pode ser uma Façanha onde ele recebe +2 para detectar, por exemplo, mudanças em ondas sonoras. Uma das sessões mais complexas e interessantes, ela carrega toda uma série de sugestões para pensar-se personagens autistas, como que tipo de estímulos sensoriais o acalma ou o perturba (pense em um personagem que seja acalmado por textos em uma tela mas perturbado por sons de alta frequência), ou interesses específicos (como coletar compulsivamente chaves ou dados ou vidros de perfume), e como tudo isso pode se transformar em boas ideias do personagem.
- Depressão e Ansiedade: o famoso “mal do século” e como foi vulgarizado e como às vezes uma pessoa em um dos estados pode enganar dizendo que “Está tudo bem!”
- Esquizofrenia: difícil de ser diagnosticada e quase um “balaio de gato” para qualquer situação neuro-atípica que não caia em outras definições, cita também como curiosamente os efeitos e diagnóstico da mesma variam conforme a cultura: enquanto no ocidente existe o conceito das “vozes na mente que mandam matar”, na Índia tendem a ser mais “calmas”. É tão complicado descrever aqui quanto na leitura na sessão no FAcT, tanto quanto Depressão e Ansiedade e Autismo
- Bipolaridade: aqui uma questão interessante é que tenta-se “desromantizar” a Bipolaridade como “doença de Artista”, já que existem dois tipos básicos de bipolaridade, onde a variação é baseada na potência dos momentos de mania, onde um tipo fica ainda sociável o bastante para tentar “extravasar” essa mania em algo “produtivo”, enquanto no outro a pessoa se torna perigosa e paranoica o bastante para demandar atendimento especializado.
- Transtorno de Estresse Pós-Traumático: outro clássico deturpado com o shell-shock da época da Guerra do Vietnã, ela pode aparecer por vários motivos e de várias formas. Percepções de cheiros onde não deveriam existir, visões, terrores noturnos, flashbacks. Tudo isso pode acontecer com alguém com a PTSD
Suas Ferramentas e Condições
Por fim, depois das 52 páginas descrevendo as condições exploradas (e que nem cobrem todas as possibilidades), entramos em uma sessão mais relacionadas a regras de Fate.
Tais novas regras visam refletir as necessidades e consequências específicas relacionadas às condições mostradas, como a questão de surtos de Autistas que tenham sobrecargas sensoriais, cadeiras de rodas para cadeirantes ou o clássico óculos fundo de garrafa.
A primeira parte é sobre Condições. Novamente, como ocorre em Horror Toolkit e Dresden Files Accelerated, essas condições refletem potenciais eventos que podem ocorrer quando elas são ativadas, além das situações que podem levar a tais gatilhos. Também são usadas para estipular regras para que tais condições sejam limpas e a dificuldade de recuperar-se de tais condições.
De maneira geral, as Condições seguem as mesmas regras do Ferramentas de Sistemas, páginas 12 e 13, com a adição de condições Permanente, condições que só podem ser desmarcadas após um Marco Maior.
Por exemplo: um personagem Autista pode entrar em um Surto, por exemplo, quando em uma situação de hiper-exposição sensorial (lembre de discutir isso com o Narrador). Quando você marca ela quando, por exemplo, o seu personagem Autista com problema de hiper-exposição auditiva acaba no meio de uma Multidão Barulhenta, você deve optar por algumas coisas que vão acontecer com o personagem: ele pode ficar sem conseguir se expressar, ou expressar-se emocionalmente de maneiras explosivas; se ver paralisado, tendo que ser conduzido por alguém de confiança e por aí afora.
Cada condição trás as regras para marcar a caixa e para limpar tal condição. No caso acima, por exemplo, ele pode precisar ir para um local silencioso, ou com barulhos suaves (talvez com alguns sons de natureza e por aí afora) e permanecer por um bom tempo lá, recuperando seu foco e deixar de ter problemas com a sobre-exposição à qual ele sofreu.
Já na parte dos Dispositivos de Acessibilidade, eles podem ser delineados como Aspectos (como em Caronte, meu fiel cão guia) e Façanhas, como a Bengala Branca que ajuda o cego a se guiar pela rua, não podendo ter Aspectos de localização forçados contra ele.
Devido até a tal característica, FAcT sugere que se tratem tais Dispositivos como Extras, a serem compostos da mesma maneira, definindo Permissões e Custos e os Benefícios adicionais deles. Além disso, é interessante que existe uma lista de condições listadas que se beneficiam de certos Dispositivos: não apenas cegos se beneficiam de Cães-Guias, mas Autistas, pessoas com PTSD ou Ansiedade, por exemplo.
Mantendo o exemplo do Cão-Guia, a Permissão para ter um, segundo o FAcT (página 83) seria um Aspecto relacionado à condição específica, e um custo seria uma perícia Cão-Guia que poderia ser usada em momentos onde o Cão-Guia ajuda a pessoa (por exemplo, Percepção para notar locais perigosos e Atletismo para conduzir a pessoa por caminhos adequados). Além disso, sempre tem Façanhas que podem ser compradas, como o fato de seu Cão-Guia ser um Defensor Fiel, o que permite que você use sua perícia Cão-Guia para Defender-se de ataques físicos.
Além disso, ele mostra algumas variações para cada Dispositivo: imagina que maneiro seria os seus personagens acharem que o mago maligno cego é indefeso até que ele mostre seu Dracolich Guia? E o piloto de nave cego que tem um Metroid Guia?
Faça sua lição de casa… E a faça novamente!
Para finalizar, a partir da 101, o FAcT traz uma lista de recursos úteis (em inglês, infelizmente), incluindo coisas como as ferramentas de segurança de mesa como a Carta X e o Controle Remoto, e descrições de alguns gestos para usar-se em narrativa de RPG (e Fate em Particular) em ASL. Fica o pedido: algum leitor que se comunique em Libras e puder ajudar, entre em contato com o autor para podermos montar tal lista para Libras. I
Essa última parte, no Prototype Edition (onde estamos fazendo a resenha) ficou infelizmente fraca, já que as descrições não são suficientes: com as artes certamente ficará melhor.
E como “surpresa final”, ao fim do FAcT é incluído um conjunto de três páginas para uma ficha de Fate voltada a jogadores com baixa visão, onde a primeira página inclui os Aspectos, a segunda Perícias, Estresse e Consequências e na última Façanhas.
Abra as Portas
Esse livro vem em uma ótima hora, ainda que possa parecer insuficiente. Um material 4.5/5, ele tem muitos e muitos elementos interessantes não apenas para o jogador do Fate, mas para qualquer RPGista que tenha como intenção sincera tratar questões relacionadas a acessibilidade.
Uma coisa curiosa é que eu tive a experiência de narrar para pessoas sem visão e aprendi técnicas válidas para ajudar elas (como DIZER TODOS OS ASPECTOS DO PERSONAGEM), algumas inclusive que não foram citadas no FAcT.
Talvez o ponto fraco seja que ele não tem como cobrir tudo: faltou no meu ponto de vista muita coisa. Mas isso infelizmente é uma questão da própria mídia: seria desagradável (para dizer o mínimo) tentar criar um manual completo e acabar com um livro de 1000, 2000 páginas.
Mas o ponto importante é começar um debate sério e inclusivo sobre como lidar com essas condições, além de prover bases de onde você possa partir para, como citamos muitas vezes aqui e é citado no FAcT, fazer sua lição de casa e pesquisar mais sobre esses assuntos: a Internet está aí, para que ao menos você não comece do zero. Também as pessoas estão aí: se aproxime delas, de seus parentes, pergunte suas necessidades, as dificuldades, as partes que podem ajudar você a colocar coisas interessantes ao lidar com personagens e, acima de tudo, jogadores que tenham essas condições.
O RPG é um ambiente que se vê como inclusivo, mas na prática é extremamente hostil. Vemos deficiências (aqui é importante dar nomes aos bois) como circunstâncias ruins ou como estereótipos móveis.
É hora de parar de pensar assim, e pensar em pessoas com tais condições como PESSOAS.
Capazes de serem Dramáticas, Proativas e, acima de tudo, COMPETENTES.
Como todo personagem de Fate deve ser.
27 Jan 2020
Publicado Originalmente no Site da Dungeon Geek
Uma coisa muito comum no mundo de RPG é fazer adaptações. Na prática, boa parte dos jogos de RPG que as pessoas jogam são basicamente adaptações: ainda que os cenários comercializados normalmente sejam autorais (ou seja, em teoria, novos), muitos são bem carregados de referência. Além disso, o hábito de realizar-se adaptações deve-se à própria característica humana de querer, ao mesmo tempo, contar novas histórias e “pertencer a algo”: ao realizar uma adaptação de um cenário, sempre há chance de, por conta própria, “preencher lacunas” que, na opinião da pessoa, o autor deixou de lado.
Esse processo de fanfic é algo que é muito importante: pensando em séries como Doctor Who, Star Wars e Star Trek, elas só sobreviveram a longos hiatos graças ao processo dos fãs de criar em cima do que foi deixado previamente. Em maior ou menor grau de “oficialidade”, todos esses cenários sobreviveram a hiatos graças aos fãs e sua produção independente, ou a produções que foram feitas por comissionamento, como ocorreu no caso de Star Wars e seus módulos do período da AEG.
Dito isso, adaptar cenários em Fate não é algo difícil: o Fate, pela sua característica de focar na narrativa e pelo fato de trazer regras que suportam, retroalimentam e são retroalimentados pela narrativa, permite descrever facilmente cenários de todos os tipos de mídia. Veremos algumas dicas sobre como realizar tais adaptações, o que também pode ajudar em casos que você queira subverter ou modificar tais cenários.
Fate é um jogo que possui muitos elementos simples que podem ficar bastante complexos conforme a necessidade. Por isso, formar um “repertório de regras” é muito interessante.
Existem muitos jogos para Fate, desde materiais publicados gratuitamente por fãs do sistema quanto manuais caros e ricos em detalhes. O importante é consultar todos os materiais possíveis e formar seu repertório.
E por que isso?
Primeiro: uma série de jogos para Fate são baseados em Tropos genéricos, com algum tipo de plot-twist. Por exemplo: tanto Eagle Eyes quando Nitrate City possuem fundamentos em filmes noir, mas um se passa em Roma enquanto no outro monstros de filme B sairam de seus filmes e ocuparam a cidade de Los Angeles, a Cidade de Nitrato.
Desse modo, ao ler vários livros Fate, você vê como múltiplas regras podem, à sua própria maneira, enfatizar detalhes do cenário para formar o clima dos mesmos.
Segundo: ao conhecer os múltiplos cenários Fate, você pode utilizar alguns deles como base para jogos em diversos estilos, em especial se a sua adaptação for de algo que segue um tropo bem fixo, como Contos de Fadas ou Investigadores Adolescentes ao estilo Scooby-Doo. Para os casos citados anteriormente, você poderia utiilizar Loose Threads, Nest e Weird World News como base de suas adaptações, por exemplo, de Once Upon A Time ou Tutubarão.
Por fim: você pode aprender a lidar com tropos de maneiras diversas e interessantes. Por exemplo: Psychedemia pode tanto servir tanto para uma adaptação de Jogo do Exterminador (o tropo principal) quanto para algo similar a Matrix (tire a parte espacial e adapte a questão dos poderes paranormais) ou para um jogo com uma pegada de Babylon V (remova a parte da “Realidade Paralela” do Realm, ou a utilize se totalmente se for o caso). Por aí você vê como um jogo pode ser escrito de maneira flexível e ao mesmo tempo interessante com pouco texto.
Desse modo, ao fazer isso, você com o tempo vai percebendo os tropos que cada cenário envolve, como aproveitar eles e como combinar elementos de regras. O que permite que você economize tempo com aquilo que realmente fizer diferença, como mostramos no artigo sobre Extras.
A milhagem sempre irá variar
Antes de começar, é importante fazer uma ressalva: não importa o quanto você se aprofunde a tentar traduzir mecânicas e características de um cenário para o Fate, você NUNCA, JAMAIS vai alcançar 100% de precisão na adaptação.
Isso se deve pois cada mídia (e cada meio específico dentro de uma mídia) possui certas características específicas que não é replicável, não importa o quanto você dedique-se.
Um exemplo que podemos tomar no mercado brasileiro, dentro da mídia de RPG, é Tormenta: originalmente voltado para 3D&T, GURPS e AD&D, seu estilo foi se diferenciando até formar o Tormenta RPG que conhecementos, usando Sistema D20.
Isso deu um determinado tom ao sistema, mais “sério”. Entretanto, quando se usa o Tormenta Alpha (para 3D&T), ainda que o cenário “narrativo” seja o mesmo, tem-se a impressão que o cenário fica mais “galhofa”, devido à característica mais animesca do 3D&T, com superpoderes avassaladores e coisas do gênero.
Outro exemplo clássico é quando vemos adaptações de livros para filmes e vice-versa: NUNCA você consegue fidelidade absoluta, seja por limitações técnicas (como tentar descrever cenas de batalhas em livros), seja por limitações autorais (Senhor dos Anéis sem Tom Bombadil).
Portanto, não se sinta acanhado se o seu jogo não refletir 100% do cenário base da adaptação: isso é tecnicamente impossível. Concentre-se em trazer seu próprio foco à adaptação. Como dito em O Carteiro e o Poeta “A poesia não pertence àqueles que a escrevem, pertence àqueles que necessitam dela.”
Dito isso, vamos começar a pensar.
Narrativa primeiro, regras depois
Uma coisa importantíssima e que o Fate permite fazer bem fácil: foque primeiro na narrativa que você quer fazer.
Em um primeiro momento, leia a história e evite qualquer regra que o cenário tenha em sua origem. Isso vai ajudar você a procurar as coisas que são mais interessantes em termos narrativos e traduzir os mesmos em Aspectos. Isso pode te ajudar a trazer as regras necessárias para fazer aqueles aspectos serem “mais” que representações narrativas.
Por exemplo, se pensarmos nos Reinos de Moreania, um dos Aspectos importantes do cenário são Os Herdeiros dos 12 Animais que se tornaram humanos, e isso vai já nos indicar que vamos precisar de alguma regra que lide com Os Herdeiros Moreau, que possuem algumas capacidades a mais que o ser humano. Como isso será feito, ficar para um segundo momento.
Outro exemplo é, ao pensar em Perry Rhodan, uma ficção científica clássica alemã, existe uma raça chamada de Halutenses. Gerados a partir de criaturas conhecidas como Bestas Feras, são inteligentes, muito fortes e podem comer basicamente qualquer coisa. Entretanto, de tempos em tempos, entram em uma fase que chamam de “Lavagem Forçada”, quando abandonam seu planeta Halut para satisfazerem sua curiosidade incessante.
Por meio dessa descrição rápida e bastante simplória de um personagem, temos a existência de duas possíveis raças, os Halutenses e as Bestas-Feras. Os Halutenses são Inteligentes e Muito Fortes, podem Comer Basicamente qualquer coisa e, de tempos em tempos, Fazem uma “Lavagem Forçada”, saindo pelo Universo para satisfazer sua Curiosidade.
Vários Aspectos, não é?
Então, focar na Narrativa te ajuda a “batelar” as ideias, encontrar os Aspectos mais promissores para o seu jogo e potencializar coisas que você poderá transformar em regras.
Claro que vale a pena enfatizar que você NÃO DEVE realizar um Kitchen Sink e tentar explodir TODAS as regras possíveis. Faça suas notas e vá explorando as coisas conforme você perceber que elas serão interessantes no seu jogo.
Começando a moldar regras
Dito isso, a coisa começa a ficar mais interessante, pois agora precisamos moldar o cenário em termos de regras de Fate.
Para isso, vale a pena citarmos novamente o que dissemos anteriormente ao falarmos de Extras:
- Aspectos para definir coisas que mudam a história
- Perícias para novos contextos em ações
- Façanhas para realizar coisas extraordinárias
- Estresse para coisas consumíveis
Como posso visualizar isso em personagens ou situações?
Vamos mostrar alguns exemplos:
Aspectos como parte das regras pode ser legal quando você precisa representar tipos específicos de personagem, se isso for necessário de maneira ampla. O exemplo clássico são em séries de Ficção Científica, onde você pode transformar as raças dos personagens em Aspectos que denotem e possam ser usados para invocar ou forçar situações. Por exemplo em Babylon V os Narn tendem a ser ritualisticos e guerreiros, além de não gostarem muito dos Centauri, que por sua vez são decadentes ainda que cultos. Desse modo, tanto ser um Narn quanto ser um Centauri pode ser algo interessante para os Aspectos.
Perícias são interessantes de várias formas, em especial quando você pensa em possibilidades de colocar isso como contraponto entre o uso como Perícia ou como Abordagem: muitas vezes, se todos os personagens puderem fazer a mesma coisa ou serem similares, usar Abordagens pode ser interessante ao deslocar o eixo da ação menos do o que está sendo feito e sim em como a coisa é feita. Entretanto, talvez você queira usar Perícias para enfatizar especializações, fragmentando, modificando ou aumentando o nível de perícias, fazendo com que os times tenham os mais diversos focos. Apenas tome cuidado, nesse caso, de evitar uma super-especialização que acabe “capando” o personagem se ele sair de sua “zona de conforto”. Além disso, existem várias outras formas de medir-se competência dos personagens, como falamos lá atrás ao falarmos de perícias.
Façanhas são um dos pontos fortes em qualquer adaptação: como elas, como dissemos acima, representam coisas extraordinárias, elas sempre vão ser muito focadas aqui. Equipamentos, poderes, capacidades, tudo aquilo que é especial pode ser representado como Façanhas. E se combinarmos isso com o que vimos anteriormente sobre Trilhas de Façanhas e coisas do gênero, certeza que teremos como adaptar até mesmo situações ao estilo Dragon Ball Z, com seus Níveis de Super Sayajin tendendo ao infinito: basta encadear eles de modo que um seja façanha do outro.
Estresse e Consequências são um pouco mais complicados de valorizar: em geral, o sistema de Trilhas de Estresse Físico e Mental, mais as consequências funciona bem. Mas aqui existem algumas coisas que você pode fazer de diferente e que tornem seu jogo mais interessante:
- Crie uma nova Barra de Estresse de um tipo adequado para o jogo. Isso pode ser legal quando ou você tem um recurso que pode ser usado para energizar suas ações, seja uma Barra de Chi para um Street Fighter ou uma de Momentum para um Runner de Mirror’s Edge, ou algo que pode representar recursos vitais que podem se degradar com o tempo, como a Sanidade em um jogo de Horror ou Recursos em um jogo Cyberpunk. Se você combinar isso com regras de Esforço Extra e/ou de Caixas de Uma Tensão (como mostradas no Ferramentas de Sistemas, página 49), você pode desenvolver toda uma gama de sistemas interessantes. Essa, inclusive, foi a forma que usamos para definir a questão do Escopo do Fae Guardians, enfatizando que caso algum deles gastasse todo seu Escopo, ele sofreria uma Sobrecarga, dando lugar ao personagem de fábulas;
- Use Condições, como mostrado no Ferramentas de Sistemas, página 12. A grande vantagem disso é tornar bem mais intuitivo determinar as Consequências das Ações dos Personagens. Isso fica ainda mais interessante quando você usa regras como Sem Estresse (Ferramentas de Sistema, págian 49) ou um sistema de dano mais simples como o definido em Uprising (uma caixa em caso de sucesso no ataque, duas em caso de sucesso com estilo), podem tornar o combate ainda mais brutal e rápido, sem falar que permite que você restrinja e impeça que o jogador marque Condições que não fazem o menor sentido em relação ao que aconteceu com ele;
- Jogue sem Estresse ou sem Consequências: sem Consequências o jogo flui rapidamente, e pode ser interessante quando as coisas forem tudo-ou-nada, sem falar que pode ter o ar de Barra de Dano que alguns jogadores mais old-school podem apreciar, em esepcial quando combinado com Esforço Extra. Sem Estresse, cada ataque sofrido pode ter uma consequência terrível, já que não existe o Estresse como “colchão narrativo” para o personagem. Isso sem falar que pode representar muito bem cenários de perigo total
- Não usar nem um nem outro: essa opção ficou muito visível no Fate Horror Toolkit, que em seu Capítulo 6, sobre Survival Horror, traz uma solução onde você pode escapar de danos marcando Consequências ou sacrificando NPCs com os quais o personagem tenha ligação. Se você pensar bem, por esses sistema você pode tornar tudo AINDA MAIS brutal: o personagem se sacrifica ou a outrem? Os personagens ficam MUITO frágeis, o que pode ser o que você quer
Esse é um ponto onde é muito fácil se perder a mão: quando você vai criar Extras e Fractais.
Como dissemos anteriormente ao falarmos sobre Extras, evite fazer o Kitchen Sink: você não precisa tratar tudo como se fosse personagens. Existem situações interessantes para isso, e um excelente exemplo tanto de solução quanto de problema é Mindjammer, que traz fractais para Civilizações, Planetas, Espaçonaves, Culturas, etc, etc, etc.
Isso pode ser uma solução porque ele já traz todos os subsistemas para naves e afins, mas pode se tornar um problema se você tentar usar vários desses subsistemas, pois você vai se pegar tendo que administrar muitos Aspectos, Perícias, Façanhas e assim por diante.
Dito isso, o ideal é sempre manter as coisas mais simples possíveis, mas não se fazer de rogado quanto ao adotar Extras e Fractais.
E para isso, tanto o livro do Fate, em seu Capítulo 11, quanto os livros Ferramentas de Sistema e demais Toolkits, possuem todo o tipo de Extras que podem se aplicar ao seu jogo.
Se, ainda assim, precisar criar algum Extra ou Fractal, procure manter as coisas mais simples de modo que tudo fique interessante.
Alguns Extras que vale a pena mencionar aqui, já que aparecem DEMAIS em muitas adaptações:
- Arma/Armadura (Fate Básico, 253): como falamos em muitos momentos, sempre mencionamos que Fate sofre do “Efeito 3D&T”, onde não importa, em termos de regra, que tipo de equipamento você está usando, em especial Armas ou Armaduras. Nesse subsistema, que o Fate Básico mostra na Página 253, funciona de maneira bem interessante: o nível de Arma se soma a todo ataque que use aquela Arma que “entre” (ou seja, que passe a Defesa do Personagem), enquanto Armadura reduz a tensão de estresse sofrido. Esse pode ser interessante de se avaliar não apenas para dano físico, mas para mental: uma Rezadeira pode ter, por exemplo, Armadura: 2 para resistir a tentações ou horrores, enquanto um Ricaço pode ter um Ataque de Canibalização que funciona como Arma: 2 contra alvos do mesmo tipo de mercado que os personagens;
- Superpoderes (Fate Básico, 256): Esse subsistema é bem interessante pois ele cobre basicamente qualquer tipo de poder especial: superheróis, magia, paranormalidade, mutações… Não interessa.
- Equipamentos Especiais (Fate Básico, 259): mostra como você pode criar todo tipo de equipamento especial, desde Espadas de Gel Cinético até A Millenium Falcon, e te dá todo tipo de sugestão a seguir. Isso se combina legal com a parte de Veículos e Organizações (página 263)
- Magia (Fate Básico página 265 e Capítulo 8 do Ferramentas de Sistemas): esse é um que, no Ferramentas de Sistemas, é MUITO completo, com muitas variações, usando Façanhas, ou com Aspectos e Perícias, ou com outras combinações diversas.
- Raças (Ferramentas de Sistema, página 31): algumas possibilidades interessantes, envolvendo, por exemplo, uma nova perícia Elfo que mostra o quão bom um personagem é enquanto Elfo, além de Aspectos e assim por diante;
E assim por diante… Tem muitos subsistemas em jogos Fate: uma dica séria é ler os jogos a série Worlds of Adventure, pois muitos deles trazem subsistemas bem legais. Apenas para citar rapidamente coisas legais dele:
- Magias e Escala em Secrets of the Cats
- Populações e Tensões em Loose Threads
- Talismãs em Nest
- Aptidões Psíquicas em Psychedemia
- Culturas Alienígenas em Andromeda
- E A Convergência em SLIP
E assim por diante.
E uma dica especial para tradução de regras de RPG: procure perceber que tipo de situação aquela regra procura tratar e considerar a mesma em termos de regras do Fate. Um exemplo é Alinhamento de D&D: ele pode ser um Aspecto que pode incluir uma barra de Tensão de Estresse ligado aos “pecados” (ao estilo que existe em Storyteller), ou ainda uma Tensão ao estilo de Loose Threads, entre outras opções.
Qual a melhor opção de regra?
Resposta rápida: A que funciona para o seu jogo
Resposta correta: na prática, vai depender do estilo de jogo. Você vai precisar experimentar e verificar o que funciona para o estilo do jogo e para seu estilo específico de narrativa. Alguns Fractais e Extras e regras podem ser bem imersivas e bem atreladas ao jogo, como A Convergência de SLIP, onde a PRÓPRIA CAMPANHA ataca os personagens (sim, é estranho desse tanto). Entretanto, tome muito cuidado para não saturar a sua adaptação com tantas regras que você possa acabar se pegando fazendo accountability de Aspectos e Façanhas e Extras e poderes e perca o fluxo da narrativa.
Obviamente, você PODE sim querer um sistemas de regras BEM táticas para uma adaptação de Star Wars onde você vai ter a Corrida da Estrela da Morte, ou um sistema mega-tático de esgrima e duelos para seu jogo de Os Três Mosqueteiros. Isso de modo algum é errado. Apenas tome cuidado para que você não se pegue incluindo coisas que possam simplesmente inviabilizar seu jogo, tornando-o arrastado demais, ou ao mesmo tempo não dando a devida importância para o crunch em uma adaptação de Assassination Classroom que simplesmente não dê aos jogadores a chance de matar o Koro-Sensei.
Dito isso, o ponto fundamental de uma boa adaptação para Fate é o Equilíbrio: no Fate, tudo em termos de regra é (ou deveria ser) voltado para enfatizar a narrativa e as características proativas, dramáticas e de competência da pessoa. Se isso não for levado em consideração, você certamente vai sofrer com regras demais ou de menos, tendo algo que reduza a velocidade do sistema ou tire os detalhes táticos que podem adicionar à narrativa. Afinal de contas, algumas das melhores cenas do cinema e dos livros dependem de eventos com muitos detalhes táticos, como a Batalha de Pellenor, a Luta em Mustafar entre Obi-Wan e Anakin, a Batalha do Beruna ou mesmo evitar que a Desenholândia seja riscada do mapa.
Conclusão
Vimos que, na prática, adaptar sistemas para Fate é uma arte quase tão complexa quanto para qualquer outro sistema, demandando conhecimendo do cenário e do Fate (além do de qualquer sistema do qual você está trazendo o cenário), além de nunca ficar 100% perfeita, já que existem detalhes que não podem ser “migrados” de uma mídia (ou meio dentro da mídia) de maneira perfeita. Também percebemos que o Fate oferece toda uma gama de ferramentas sobre como realizar uma boa adaptação, incluindo em seus materiais toda uma gama de regras que você pode incorporar ao seu jogo conforme a necessidade.
Por agora, ficamos por aqui…
Até a próxima, e role +4.
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