Um conto do Templo Voador

Por Fábio Emilio Costa

Pergaminho Eterno olha para a luz que guia os Peregrinos de volta ao Centro dos Muito Mundos, onde fica seu lar, o Templo Voador. Sua manta azul escura e o conjunto simples de camisa e calças brancas estão sempre limpas, como a vaidade dele sugere. Mesmo voando rápido, sua cartola e o monóculo que usa sobre o olho direito permanecem intactos, sinal da elegância de um verdadeiro Peregrino do Templo Voador, ao menos na concepção do mesmo:

- Estou exausto, Pergaminho Eterno. - diz a poderosa voz ao seu lado, também voando pelo Espaço entre os Muitos Mundos. Pergaminho Eterno olha para o lado e vê os braços poderosos e o sorriso contagiante, ainda que realmente exausto, de Generoso Urso.

Um peregrino de tamanho quase tão grande quanto seu coração, Generoso Urso é o exato oposto de Pergaminho Eterno: enquanto Pergaminho Eterno sempre foi um estudioso que controla suas emoções e pode ser capaz de jogar xadrez com Deuses (como já o fez antes) para resolver os dilemas das Carta que chegam ao Templo, Generoso Urso é expansivo e explosivo, um Peregrino de excessos, tendo um sorriso tão amplo quanto é a sua fúria quando diante do que é Errado.

Suas roupas, assim como tudo nele, são excessivas: faixas e faixas de linho ao redor de seus braços, pernas e peito, um leve quimono branco amplo encimando o peito e calças que caberiam quase dois Generosos Ursos dentro dela, seguros em seu lugar por uma faixa.

- Devemos estar chegando logo ao Templo, Generoso Urso. - diz Pergaminho Eterno, em um tom suave e calculado, como tudo o que Pergaminho faz - Talvez encontremos outras trupes de peregrinos… - ele complementa, quando vê outros dois Peregrinos se aproximando.

De imediato eles reconhecem um dos Peregrinos que se aproxima e estranham sua presença: o enorme Rastelo que carrega às costas e o chapéu de palha que veste são incomuns de serem vistos fora do templo, isso sem falar de sua dona, com sua pele queimada da Luz do Templo, suas vestes rotas e rasgadas quase ofendendo a sensibilidade de Pergaminho Eterno, e o olhar duro quase derrubando Generoso Urso.

Ao lado da mesma, Pergaminho Eterno nota depois de um tempo, uma mirrada, quase imperceptível, presença: uma garota pequena, até para a proporção de todos os Peregrinos (com a exceção óbvia de Generoso Urso) e magra, suas vestes são bem comuns, o que a torna “invisível”, ainda mais com suas habilidades de ocultar sua presença ao ponto de praticamente “desaparecer”, uma habilidade incomum, mesmo se considerar que quase todo Peregrino possui algum tipo de habilidade estranha ou mágica, assim como os Monges que os criam no Templo Voador.

- É raro ver vocês duas, Rastelo de Aço e Vento Silencioso, longe do Templo. - diz Pergaminho Eterno, com um leve sorrisinho. Na verdade, as duas não se incomodam, pois ambas conhecem Pergaminho Eterno e, embora ele aparente ser arrogante, na realidade ele o faz por sua extrema rigidez consigo mesmo enquanto sua educação. Não à toa que Pergaminho Eterno é o peregrino quando algo envolvendo negociações e tradições deve ser resolvido.

- Um planeta no Céu do Pó estava com muita fome, e suas sementes foram roubadas por um dos impérios do Céu do Metal. - diz Rastelo de Aço - Minhas sementes ajudaram por um tempo, mas o solo lá era muito específico, apenas as plantas roubadas podendo crescer lá. Conseguimos pegar de volta as mesmas graças a Vento Silencioso, mas também contamos com a ajuda dos povos do império, que derrubaram seus líderes belicosos.

- Isso não foi fácil. - diz Vento Silencioso, na sua voz tipicamente baixa, o que faz com que Pergaminho Eterno e Generoso Urso se aproximem - O Tirano de Aço escondia a colheita do povo de Falshara muito bem. Levou tempo até que eu encontrasse os depósitos, e ainda mais tempo para que conseguíssemos invadir os mesmos.

- Uma bela jornada para um dilema importante ao ponto de demandar uma Carta ao Templo. - diz Pergaminho Eterno. - Nós também tivemos uma jornada interessante: dois povos iam entregar um casal de jovens enamorados aos Deuses dos mesmos. O mais belo amor sendo entrege em sacrifício pela manutenção da paz.

- Balela! - diz Generoso Urso - Deuses são sempre assim, acham que têm mais direitos que todos e não aceitam não como resposta. Bem, aqueles não eram de nada. Foi fácil demonstrar que o Deus da Batalha deles era um fracote, que se escondia atrás de uma massa de músculos.

- Em compensação, Generoso Urso, lembro-me de você todo tímido com a Deusa do Amor e da Paz. Foi tão difícil assim convencê-la de que aqueles jovens representariam melhor o ideal dela se permanecessem vivos? - diz Pergaminho Eterno, enquanto as bochechas de Generoso Urso ficam extremamente vermelhas e ele dá um sorrisinho tímido.

- Bem, acho que todos nós merecemos descanso. - diz Rastelo de Aço, enquanto eles continuam voando para o Centro dos Muito Mundos, o voo dos mesmos não dependendo de qualquer tipo de aparelho, seja balão, ornitóptero ou mesmo barca voadora.

Conforme os quatro se aproximam, eles percebem algo estranho:

- A luz do Templo… - diz Vento Silencioso - Onde está a luz do Templo?

- E que vento é esse? - diz Rastelo de Aço, quando um poderoso vento giratório os atinge. Generoso Urso consegue agarrar tanto Vento Silencioso quanto Rastelo de Aço e levar até um local seguro, um pequeno torrão de terra de uns 40 metros, mas Pergaminho Eterno não tem a mesma sorte:

- O QUE ESTÁ ACONTECENDOOOOOOOOoooooooooo!?!?!?!?!?!?!? - os Peregrinos ouvem Pergaminho Eterno gritar, e percebem que ele não consegue voar, caindo igual uma rocha para o centro do turbilhão de pó e cinzas no local onde ficava o Templo Voador. Nenhum sinal dos monges, dos dojos de artes marciais, das enormes bibliotecas, dos laboratórios de pesquisa…

Tudo sumiu…

Tudo se foi…

Rastelo de Aço e Vento Silencioso sentem uma profunda melancolia e percebem que com isso não podem voar. Generoso Urso também sente isso, mas não possui tempo de se sentir melancólico: Pergaminho Eterno está rodando cada vez mais rápido em meio ao turbilhão de pó e cinzas.

- Aguente Firme, Pergaminho! - diz Generoso Urso. - Vocês duas, fiquem aqui, que eu irei resgatar Pergaminho Eterno. Aparentemente sou o único que ainda consigo voar.

- Não seja louco, Generoso Urso! Você não conseguirá resgatar Pergaminho Eterno sozinho. Poderá ter o mesmo destino que ele… - diz Rastelo de Aço - Acho que tenho uma semente mágica útil comigo.

Rastelo de Aço mexe em meio às suas coisas e encontra uma pequena semente brilhante, enquanto Pergaminho Eterno continua rodando no turbilhão de cinzas e pó. Ela a planta enquanto Vento Silencioso rega-a com um pouco de água que ainda possuia em seu cantil. A semente brota em instantes, formando uma vinha em forma de corda, que Rastelo de Aço entrega para Generoso Urso.

- Faça Pergaminho Eterno pegar essa corda, e eu e Vento Silencioso ajudaremos vocês os puxando de volta. - diz Rastelo de Aço

Urso Silencioso voa do torrão de terra até o turbilhão:

- Pergaminho Eterno, pegue a corda! - diz Generoso Urso

- Não posso, tem algo que peguei no centro desse turbilhão de relance e não posso soltar. Acho que tem a ver com tudo isso! - responde Pergaminho Eterno

- Ora bolas! - diz Generoso Urso, irritado - Como sempre nos metendo em confusão! Tudo bem, não solte o que quer que seja! Vou tentar te agarrar!

Uma tentativa, e outra, e uma terceira… E apenas na quarta Generoso Urso consegue agarrar Pergaminho Eterno pelas pernas.

- Agora, vocês duas!!! - grita Generoso Urso.

Rastelo de Aço e Vento Silencioso possuem dificuldades para puxar tanto Generoso Urso quanto Pergaminho Eterno e seja lá o que Pergaminho Eterno pegou. Pergaminho Eterno cai no torrão de terra, suas roupas esfarrapadas, seu cabelo bagunçado, e faltando sua típica cartola. Conforme ele se recompõem em alguns instantes, o turbilhão desaparece do Espaço entre os Muito Mundos, deixando apenas escuridão no lugar, além do terrível vazio da ausência do Templo Voador, provedor de luz e calor para os Muito Mundos.

- Oh, puxa! - diz Pergaminho Eterno - Odeio estar nesse estado lastimável… Minha Cartola! Cadê a minha Cartola! - ele diz, quando sua preciosa cartola lhe cai à cabeça, escondendo-lhe os olhos e fazendo os demais Peregrinos rirem do estado lastimável desse elegante Peregrino. Ele ergue a cartola e faz “Humpf”, ao colocar a mesma de volta depois de a limpar, mas no fundo sabe que todos precisam disso para passar esse estado de perturbação.

Mas ele não passa por muito tempo.

- O que aconteceu com o Templo? Como ele poderia desaparecer assim? - diz Vento Silencioso, em um tom normal de voz, o que é quase um grito para a mesma

- Não sei! - diz Generoso Urso - Pergaminho Eterno, alguma vez ocorreu fato semelhante?

- Nunca! - diz Pergaminho Eterno - Em nenhum dos registros, lendas e anedotas sobre o Templo, jamais foi mencionado sequer que o Templo tenha desaparecido. De fato, até onde se sabe, o Templo sempre existiu!

- E quanto a isso? - diz Rastelo de Aço, observando o que Pergaminho Eterno recuperou de dentro do turbilhão - Alguma coisa que você saiba sobre isso, Pergaminho Eterno? - ela diz em um tom até ríspido, se arrependendo em seguida, ao lembrar das palavras da Monja Carvalho Orvalhado: “Você sabe plantar muito bem, Rastelo de Aço. Mas tome cuidado, pois o Rastelo precisa ferir a terra para que se possa plantar, mas a ferir demais apenas serve para que nada cresça dessa terra. E o mesmo vale quanto às pessoas.”

Pergaminho Eterno observa o objeto que recolhera, agora percebendo que o mesmo é ovalado e razoavelmente grande, tendo em torno de 60 centímetros, branco rajado de esmeralda:

- Parece algum tipo de ovo… E esses detalhes lembram muito as colunas do Templo… - diz Pergaminho Eterno. - Mas que tipo de mistérios ele reserva? - ele diz, quando percebe que o mesmo está começando a se quebrar, como se estivesse começando a chocar…

- O que está acontecendo? - diz Rastelo de Aço - Como esse ovo pode estar chocando?

É quando Pergaminho Eterno analisa a situação:

- Seja o que for esse ovo, está relacionado a nós e ao desaparecimento do Templo. - ele diz, ainda ajeitando as roupas - Pelo que percebi, ele reagiu à minha proximidade e ao meu toque… Além disso, percebo que consigo sentir-me capaz de voar.

- Gastou palavras demais, Pergaminho Eterno. - diz Generoso Urso - Esse ovo é seguro?

- Há apenas uma forma de descobrirmos. - diz Pergaminho Eterno - Vamos tocar o ovo e chocá-lo de uma vez. Seja o que for que saia dele, mesmo que ruim, não pode ser pior do que a ausência do Templo Voador para os Muitos Mundos. Observem ao seu redor e perceberão o que estou dizendo.

Todos olham para o Espaço entre os Muito Mundos e conseguem ver alguns planetas mais próximos se chocando, a influência ordeira do Templo lhes faltando e começando a tornar os Muitos Mundos em caos. Grandes barcas voadoras começaram a fugir deses planetas, abandonando-os antes dos mesmos virarem pó.

- Os Muitos Mundos estão perturbados pela ausência do Templo. - diz Rastelo de Aço - Pergaminho Eterno está certo: seja o que for esse ovo, deve ter algo a ver com o desaparecimento do Templo. Vamos terminar de chocar esse ovo.

Os Peregrinos se aproximam do ovo, que começa a ritmicamente pulsar, pequenas fendas se abrindo, enquanto os Peregrinos sentem o calor familiar do Templo os penetrar, fazendo-os vibrar de emoção dentro de seus corações, seus pés levitando levemente sobre o torrão de terra onde se resguardaram. Por fim, algo começa a quebrar a casca do ovo, até que de dentro do mesmo uma criatura grande e serpentínea, com uma plumagem esverdeada, alçando o Espaço próximo ao torrão:

- Um dragão! - diz Vento Silencioso - Do ovo surgiu um Dragão!

- Mistério em cima de mistério! - diz Pergaminho Eterno, quando o Dragão volta-se para os Peregrinos

- Cuidado! - diz Generoso Urso - Ele vai nos atacar!

Os Peregrinos sobem ao céu, sentindo suas habilidades de vôo, ensinadas pelos Monges do antigo Templo Voador, retornarem aos mesmos. Entretanto, quando Vento Silencioso sobe ao céu, ela percebe que o Dragão muda de direção, na direção dos Peregrinos.

- Ele vai nos perseguir! - diz Generoso Urso, quando eles percebem que o Dragão para diante de Vento Silencioso, os profundos olhos reptilícos observando-a, de maneira curiosa.

- Saia daí, Vento Silencioso! É perigoso! - diz Rastelo de Aço

- Esperem um pouco! Deixe-me ver uma coisa. - diz Pergaminho Eterno, voando lentamente para próximo de Vento Silencioso e do Dragão.

Pergaminho Eterno vai se aproximando, levando a mão lentamente para o grande focinho do Dragão, que observa calmamente a ação de Pergaminho Eterno. Quando este toca o Dragão, ele tem uma sensação confortável, como se estivesse tocando os milhares de pergaminhos dos Registros do Templo. Ao mesmo tempo, o Dragão demonstra-se à vontade com o toque do Peregrino do Templo Voador.

- Ele é apenas um bebê. - diz Pergaminho Eterno - Ele precisa tanto de nós quanto nós dele.

- Nós?! Precisarmos de um Dragão?! - diz Rastelo de Aço - O que precisamos agora é descobrir o que aconteceu ao Templo, Pergaminho Eterno! Nunca imaginei que, logo você, se daria a fantasias!

- Mas não é uma fantasia, Rastelo de Aço! - diz Pergaminho Eterno - Não percebeu como nossas habilidades místicas e nossa capacidade de voar voltaram a atuar tão logo o Dragão saiu do Ovo? Isso só pode ser um sinal do Templo Voador de que devemos usar o Dragão para seguirmos adiante. E ao mesmo tempo, deveríamos ensinar o Dragão sobre as coisas da Vida. Ou seja, ele será como um Peregrino, assim como nós.

- Os últimos Peregrinos do Templo Voador cuidando de um Dragão… Percebe o tamanho da ironia nisso, Pergaminho Eterno? - diz Rastelo de Aço

- De qualquer modo, acho que muito do mistério sobre o Templo está relacionado a esse Dragão. - diz Pergaminho Eterno. - Olhem, mais uma prova do que digo. diz ele ao encontrar algo no meio da plumagem do Dragão. Uma carta.

- Mais uma Carta ao Templo? - diz Vento Silencioso - Como ela pode ter vindo parar aqui se o Templo desapareceu?

- Isso não sei, Vento Silencioso, mas o que posso dizer é que com certeza isso prova que o Dragão tem alguma coisa a ver com o desaparecimento do Templo. - diz Pergaminho Eterno, enquanto ajusta seu monóculo para ler. Todos sabem que isso é apenas um ritual empolado de Pergaminho Eterno: na realidade ele tem a visão perfeita.

Conforme ele lê, ele vai falando sobre a Carta:

- No planeta Jukku, estão preocupados com a possibilidade de um planeta vizinho ser forçado a colidir com o mesmo por causa das influências de um terceiro. Entretanto, eles precisam desse planeta, pois é dele que vem a pouca água que Jukku possui. A queda de tal planeta em Jukku pode provocar um dilúvio como nunca se viu antes, e eles pedem nossa ajuda. - diz Pergaminho Eterno, resumindo a Carta - Acho que devemos ir: aparentemente, somos tudo o que restou do Templo. Não sei o que pode acontecer com os Muitos Mundos com a ausência do Templo, entretanto acho que devemos continuar a missão do Templo. Algo me diz que o Dragão concorda comigo.

O Dragão faz um menear de cabeça que leva os demais à conclusão, embora Rastelo de Aço continue com críticas:

- Acredito que deveríamos verificar o que aconteceu e para onde foi o Templo: os Muitos Mundos vão entrar em desordem com a ausência do Templo, e não estou falando apenas de Mundos colidindo, mas de pessoas tentando aproveitar e plantar suas sementes de maldade por aí.

- Compreendo o que você quer dizer, Rastelo de Aço, e por isso mesmo acho que devemos continuar nossa peregrinação e a ajudar os povos dos Muitos Mundos. E tenho a séria impressão que iremos certamente encontrar pistas sobre o que houve com o Templo se mantivermos nossa peregrinação. - diz Pergaminho Eterno, enquanto os demais, mesmo Rastelo de Aço, concordam com a cabeça.

- Sabe onde fica Jukku, Pergaminho Eterno? - diz Rastelo de Aço

- Sim. Venham comigo. - diz Pergaminho Eterno, voando na direção oposta, enquanto pensa que, mesmo com a ausência do Templo Voador, ainda existe muito o que ser feito, muitas Cartas com Dilemas a serem resolvidos.

E que apenas eles quatro poderão resolver tais problemas agora, até descobrirem o que houve com o Templo Voador.

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