Resenha - Fate Accessibility Toolkit

Publicado previamente no site da Dungeon Geek

Nota: Essa resenha está sendo feita baseada no Prototype Edition, a versão “apenas texto” do livro, portanto não serão considerados detalhes de diagramação.

O Início

Uma verdade inconveniente sobre o RPG: os jogos e o ambiente dos jogos tendem a ser extremamente capacitistas. Devido à sua origem em jogos de guerra, a maior parte do tempo quase todo tipo de (na falta de termo melhor) deficiência é tratada de maneira negativa. Desde a perda de CA por cegueira ao famoso “Kit do Psicopata Feliz” de GURPS (comprar as desvantagens Fúria, Sadismo e Sanguinolência), situações de neuro-atipicidade ou condições diferenciadas em termos físicos são tratadas invariavelmente como desvantagens.

Isso, mais o fato de serem jogos que recorrem muito ao visual (fichas e tudo o mais) e à fala, tornam o RPG infelizmente um jogo ainda muito hostil a pessoas que tenham qualquer divergência em relação ao “padrão” social, seja em termos físicos (quantas lojas de RPG possuem acesso facilitado a cadeirantes?) seja em termos mentais (conseguimos lidar bem com jogadores que tenham hipersensibilidades, como Autistas?).

Existem algumas boas iniciativas recentes para tentar melhorar esse cenário: coisas como o DOTS Project que procura criar dados para RPG em braille ou com cores que os tornem mais acessíveis a daltônicos; o jogo Amigo Dragão (em financiamento durante o período em que esse artigo está sendo escrito), desenvolvido pelo Tiago Junges para ajudar a sua filha que é autista a interagir por meio do jogo, são algumas entre várias iniciativas, mas ainda assim esparsas e individuais.

Foi quando, Fred Hick e Rob Donoghue foram apresentados por Shoshana Kessock a Elsa Sjunneson-Henry, uma jogadora de RPGs cega, surda e com Estresse Pós-Traumático (como dito no próprio livro). Sua experiência com os jogos de RPG era a de desbravar um ambiente hostil: não apenas para personagens, mas também para jogadores, fora do padrão social. E ela veio com a ideia de como criar um jogo mais acolhedor a jogadores e personagens com algum tipo de diferença física ou mental em relação ao padrão. E ele deu o aval.

Entretanto, devido a questões econômicas, a Evil Hat se viu em dificuldades: o recente cancelamento da linha dos World of Adventure, além de uma série de atrasos em seus produtos, foram provocados por essas dificuldades.

A aposta da Evil Hat foi em começar a publicar os materiais de maneira um pouco mais crua: os Prototype Edition, edições com o conteúdo de texto, mas sem as imagens. Essas vendas iniciais são usadas para financiar as artes dos mesmos, com o compromisso de, tão logo a diagramação final estar pronta, a pessoa receberá o documento final.

A iniciativa deu muito certo com o Space Toolkit (o guia Espacial), e isso ajudou eles a colocar esse módulo adiante.

As barreiras

Na introdução ao Fate Accessibility Toolkit (vamos usar a sigla sugerida FAcT para facilitar), Elsa explica que começou a se envolver nos jogos por meio de LARPs. Como ela menciona no livro:

“It didn’t matter that I was Sherlock and I was blind. It didn’t matter that I was a hardcore dragon fighting princess and deaf. No one cared if I had a heart condition and wanted to be an epic hero.”

“Não importava se eu era cega, eu era Sherlock. Não importava se eu era surda, eu era uma Princesa Dragão Lutadora durona. Ninguém ligava se eu tinha uma condição coronária e queria ser um herói épico.”

Foi quando ela encontrou os RPGs… E começaram as restrições: como explorar as condições que ela tinha de uma maneira interessante em jogos cujas regras não previam tais situações, ou pior, as previam como um redutor na capacidade? Como criar personagens como ela em cenários e jogos que não previam isso?

E ela começou a tentar resolver o problema, criando personagens. O problema é que na maioria dos jogos, isso não é intuitivo, as ferramentas para traduzir as coisas não estão lá: no máximo, são tratadas como desvantagens e formas mais rápidas de perder-se o personagem. Afinal, como lidar com cadeiras de rodas quando as regras não as inclui? No final, elas são veículos e deveriam ser tratadas como tal.

E nesse ponto Fate chamou a atenção dela, já que é um jogo onde se “deve tratar os personagens como pessoas competentes, dignas dos riscos e desafios lançados a eles.” (Fate Básico, página 16) Você pode fazer coisas sem que ninguém diga que você não pode. Personagens não são estatísticas em um jogo que é muito mais gramático que matemático (enfase do autor do artigo). Eles são competentes e sabem como fazer seu caminho no mundo, seja como o Demolidor ou a Oráculo. Por que então os jogos tratam condições como essas como desvantagens?

A ideia por trás do FAcT é vencer essas barreiras: é tratar coisas como depressão, bipolaridade ou Estresse Pós-Traumático como mais que uma mecânica para horror lovecraftiano. É um livro para incluir aqueles que antes eram apenas estatística negativa.

E por que simplesmente não jogar com um personagem capaz, por assim dizer?

Por que, na prática, uma pessoa com o que uma pessoa capaz, por assim dizer (como o autor desse), diria ser um problema na verdade não se vê (ou não deveria) como alguém com um problema. Aquilo não é um problema, é parte dela. E é curiosamente uma minoria à qual uma pessoa pode entrar a qualquer momento: pense, por exemplo, em Marcelo Rubens Paiva. Ou melhor, leia Feliz Ano Velho e Ainda Estou Aqui.

Pode acontecer de um belo dia algo acontecer e você se ver, por exemplo, tendo que reaprender a usar um computador ou celular com recursos de acessibilidade como o Talkback, ou algo similar, tendo que se adaptar a uma nova realidade, a um novo corpo, por assim dizer. Isso passa a ser parte de você. E por isso, em alguns casos, pessoas em tal situação não querem ser “curadas”: alguns simplesmente não podem, outros não se preocupam com o fato de não serem conformes ao padrões sociais. Sem falar que muitas vezes isso foca-se na realidade não em melhorar a qualidade de vida de tal pessoa, mas na das pessoas ao redor dela.

O Começo do Caminho

Uma coisa importante: FAcT, assim como todas as Caixas de Ferramentas do Fate (as Ferramentas de Sistemas, Adversary, Horror, Space), não é algo pronto para ser usado direto da caixa. É um conjunto de recursos a serem usados pelo Narrador, e portanto demandam tempo e discrição em serem estudados e compreendidos antes de serem usados.

Além disso, ele nem chega a ser uma explicação profunda: embora existam muitos detalhes interessantes (não sabia que existem 200 formas diferentes de Nanismo conhecidas), elas não chegam sequer a arranhar a coisa toda. Portanto, você, seja como narrador ou jogador, precisará fazer sua lição de casa e, ao criar um personagem com alguma situação, entender de maneira mais profunda. Nem todo cego é o Demolidor, nem todo depressivo é a Tristeza de Divertida Mente (para usar expressões mais “comuns”).

Outra coisa importante: esse livro foi escrito por quem vive todos os dias com isso. Elsa, Fred, Rob e a equipe da Evil Hat tomou o cuidado de procurar pessoas com todos os tipos de situações neuro-atípicas e de outra forma não-conformes para falar de seus pontos de vista sobre tais condições.

Infelizmente isso quer dizer que algumas situações não são mencionadas, como algumas formas de condições mentais, epilepsia, problemas de desenvolvimento intelectual, etc… Importante, ao ler o FAcT, entender que essas são vozes de pessoas que passam por esse tipo de condição e que participam do hobby do RPG. Vozes que merecem ser ouvidas e que muitas vezes não o são.

Sobre dizer Não

A primeira coisa que vemos é um compromisso que a Evil Hat tem a muito tempo: não lidar com nada que não possa ser lidado de maneira respeitosa, e ao o fazer não o fazer com o objetivo de prejudicar algo ou alguém.

Para quem leu minhas resenhas de outros materiais da Evil Hat, é o mesmo compromisso que é feito no Horror Toolkit, sobre Horror não dar direito a ser horrível, ou em Shadow of the Century, onde você não precisa trazer para o jogo tudo dos anos 80: você pode deixar o racismo, machismo, xenofobia e homofobia lá, trazendo apenas as partes divertidas, como os ternos de ombreira, keytars, De Loreans, boomboxes, cabelos extravagantes e leques (Marcha, Ibiza, Locomia).

A ideia é: se alguém não está se divertindo, está errado. Se você cria um elemento de jogo que incomoda alguém por causa de uma condição, ao invés de dizer pura e simplesmente Não para a pessoa ou para o elemento, trate isso como uma oportunidade de crescimento. Ela não está normalmente pura e simplesmente impedindo aquilo: ela apenas quer ser ouvida. Ouça-a e ajuste conforme a necessidade.

O objetivo é a diversão: se algo que você trouxe está impedindo todos de se divertirem, você está atrapalhando a diversão e a mesa tem o direito de dizer não para aquilo. Não é errado fazer ajustes finos para chegar em um ponto onde todos se divirtam. Não se mantenha atado a clichês tóxicos: deixe o capacitismo para trás. Mesmo que isso seja não fazer as coisas como antes.

O que não te contaram sobre Acessibilidade

Essa lista é importante de rever e vou copiar praticamente as is do FAcT, por ser necessário e primordial para entender o que ele traz (lembrando que uso o termo deficiência como um termo comumente usado):

  • Nem toda pessoa com alguma deficiência deseja ser curada
  • Nem sempre dá para se curar uma deficiência
  • Binarismo em deficiências é uma ilusão: a maior parte das deficiências não são oito ou oitenta, vindo em escalas.
  • Dispositivos de Acessibilidade são ferramentas, não brinquedos
  • A deficiência não é toda a sua identidade, ainda que possa ser algo importante. Você pode ser um cego judeu, ou uma pessoa de cor cadeirante, ou uma mulher com bipolaridade, ou um homem trans autista… ou qualquer outra coisa. Pessoas com deficiência são pessoas complexas, como qualquer outra.
  • Dor é um conceito relativo: certas dores podem ser simplesmente ignoradas se você as sente o tempo todo
  • Deficiências não são caixinhas: elas variam de pessoa para pessoa. Mesmo pessoas que tenham o mesmo tipo de deficiência podem lidar com ela de formas diferentes.
  • Nem toda deficiência é visível: algumas podem não ser vistas, mas ainda poderem influenciar a vida da pessoa. Pense em pessoas diagnosticadas como autistas.

Até o cuidado ao falar sobre tais condições deve ser considerado: alguns preferem a ideia de “pessoa primeiro, condição depois”, como em pessoas cadeirantes. Outras pensam em uma ideia de que aquela condição é definidora delas, como em cego. Isso não é um detalhe: algumas preferem a primeira por terem tornado-se cadeirantes durante sua vida. Outras podem preferir se referir como cadeirante de maneira geral pois (em teoria) nunca conheceram outra forma de se enxergarem: elas sempre se viram assim por alguma razão.

Aspectos não são positivos ou negativos, eles SÃO!

Essa é uma frase que sempre costumo dizer ao mencionar Aspectos, e aqui isso é mais de oito mil vezes mais importante ao mencionarmos situações de deficiência.

Lembre-se sempre que bons Aspectos dizem mais do que uma coisa só. Dizer, por exemplo, que um personagem é Cego é um tanto genérico, enquanto dizer sobre um Combatente contra o Crime Cego é algo muito mais interessante (que o diga o Demolidor). Dizer que o personagem tem Transtorno de Múltipla Personalidade não é tão legal, mas uma Agente contra o Mal com Transtorno de Múltipla Personalidade como a Crazy Jane de Patrulha do Destino é muito mais interessante.

Ao usar Aspectos desse modo, em especial ao os Forçar, não o faça de modo a tornar a restrição algo que simplesmente vai remover o personagem do caminho: não Force o Aspecto do Hacker Cadeirante para impedí-lo de subir pela Escada de Incêndio e tirar-lhe a chance de participar da ação. Faça isso para que ele suba pelo elevador e chame atenção desnecessária para o grupo, mas de modo que ele chegue aonde o resto do grupo vai estar (talvez depois de espancar alguns capangas com o Taser embutido na cadeira de rodas). Use tais Forçadas para abrir novos caminhos de história que podem se tornar interessantes: e se o Hacker Cadeirante usar uma estação de trabalho da contabilidade para acessar os Arquivos Secretos da Megacorp? Será que não chamaria a atenção? De repente…

E lembre-se: personagens de Fate com Deficiência são pessoas antes de serem deficientes (me perdoem novamente por esse termo). Elas são parte da ação por resolverem problemas, não apenas por superarem deficiências. Evite a Narrativa de Superação, isso não é nada divertido (exceto se, e MUITO SE, a premissa do jogo, combinada entre todos, envolver TAMBÉM essa superação).

Faça a lição de casa

Em seguida FAcT lista algumas linhas gerais sobre como lidar com todo tipo de condições fora do padrão. Isso se deve, como dito anteriormente, que FAcT não tem como cobrir todas as bases, até porque existem todo um universo de condições fora do socialmente convencionado (lembre-se: 200 formas diferentes de Nanismo!).

O resumo dessa sessão, não importa se é sobre criar personagens ou trazer jogadores com condições assim é simples:

FAÇA SUA LIÇÃO DE CASA!!!!

Não trate tais condições como piada ou estereótipo: não precisamos de mais Palhaços do Crime, ou dos Gênios Cadeirantes, já os temos em suficiente.

Isso é especialmente relevante com a questão das condições mentais: estereótipos como o do super-gênio autista ou com Transtorno Obsessivo Compulsivo já foram requentados à exaustão. O mesmo vale para os sanatórios mentais abandonados, com quartos com paredes cheias de escritos perturbadores feitos com excrementos e coisas do gênero.

Outra coisa, e algo que pode acontecer com facilidade se você não se cuidar: não diagnostique seus jogadores. Não importa quanta pesquisa você faça na Internet, você não é gabaritado para isso (a não ser que você seja REALMENTE gabaritado para isso). Você pode, legitimamente, pedir para um amigo de mesa que você suspeite que tenha alguma condição procurar ajuda especializada (na verdade, você deveria) mas você não deve tentar Diagnosticar.

Você só é um Narrador de RPG, deixe isso para profissionais especializados.

Como uma sugestão para, por assim dizer, tirar a galhofa do horror e dos jogos que lidam com insanidade, uma sugestão é adotar-se o sistema de Ganchos: ao criar o personagem, ao invés de usar o Trio de Fases, faça cada jogador definir 1 a 3 Ganchos, Aspectos relacionados a coisas que mantém o personagem ligado a coisas que o mantém longe do horror. Quando o personagem se vir em uma situação em que deseja melhorar suas chances mas não tem como (por falta de PDs ou não possuir Aspectos relevantes), ele pode Arriscar um Gancho: ele recebe o mesmo benefícios de Invocar um Aspecto, mas se ele for bem-sucedido, ele deve reescrever tal Gancho ao fim da cena, em algo relativo ao contexto do jogo. Caso falhe, nada acontece. Um personagem só pode Arriscar um mesmo gancho uma vez por rolamento.

Emma possui um Gancho Seguidora de Nossa Senhora de Fátima em um jogo de Horror. Ela vê diante de si um cultista que está tentando sequestrar crianças que ela está protegendo. Ela não possui Aspectos relevantes para melhorar suas chances de matar o cultista com o rifle que Jack, o policial, deu para ela. Ela decide então Arriscar esse Gancho para melhorar seu Ataque em +2. Isso é o suficiente para acabar com o cultista, mas… Ao preço de reescrever esse Aspecto. Quem sabe agora Emma, coberta de sangue, não se veja como A Mão Esquerda de Deus, ou imagine que O Mal Vence quando os bons nada fazem.

Criando personagens

Uma coisa também importante é que personagens com deficiência não estão impedidos de pegarem perícias. Um cadeirante pode ter Atletismo, representando sua habilidade em Cadeira de Rodas (quem sabe ele não é o Cadeirante Mais Radical dos X-Games?). Alguém com, por exemplo, Autismo, pode até mesmo ter Percepção muito alta: sua hipersensibilidade a tudo pode o tornar mais sensível a notar coisas que saiam do padrão, como aquele sniper no alto do prédio.

Ao elaborar Façanhas, pense também mais no que o personagem PODE fazer do que no que ele NÃO PODE fazer: o Cadeirante Mais Radical dos X-Games pode ter um Momentos Déjà-vu da Cadeira de Roda que, sempre que ele precisar Criar Vantagens por Atletismo demonstrando suas habilidades, ele recebe +2 se puder descrever como ele desce de uma maneira praticamente impossível uma ladeira ou coisa do gênero. Já nosso Autista poderia ter uma Façanha Falso! Falso! que permite a ele somar +2 para Superar usando Conhecimentos ao perceber detalhes sutis mas precisos que permitam a ele identificar obras falsas.

Pense também em Extras que envolvam os elementos que o personagem tem que usar cotidianamente, como dispositivos de acessibilidade. Se você já é o Cadeirante Mais Radical dos X-Games, por que não incluir um Dispositivo de Tirolesa à sua Cadeira de Rodas que permita você deslocar-se de um ponto a outro que você normalmente não poderia, desde que consiga antes realizar um teste de Conhecimento para preparar o Dispositivo? Isso pode ser até bem legal não apenas para você, mas para seus amigos personagens, quando os ninjas estiverem correndo atrás deles!

Por fim, é interessante que personagens assim tenham certas Condições especiais que eles possam marcar em momentos específico. Se você é o Cadeirante Mais Radical dos X-Games, parece meio óbvio que ocasionalmente você fique Sem Seu Dispositivo, ou que possa ficar Cansado de empurrar sua cadeira de rodas… Falaremos um pouco mais sobre isso adiante.

Narrando para pessoas com deficiências

Uma sessão meio curta, até porque o narrador pode usar muitas das informações das demais sessões para ajudar, ela enfatiza a necessidade de fazer seu dever de casa: se você tem um jogador que tem deficiências visuais, talvez compense gastar um tempo enviando a ficha dele via Internet para que ele use um leitor de tela (de preferência em um formato compatível) ou que você desenvolva uma ficha em tamanho apropriado para que ele consiga ler as informações na mesma.

Além disso, procure tornar acessível o jogo: se você tem um jogador que é Surdo, talvez seja legal que você se posicione de tal modo que ele consiga fazer leitura labial e/ou consiga se comunicar em Libras com ele, ou colocar ele mais perto de você na mesa de modo que o dispositivo coclear dele fique mais próximo e capte melhor a sua voz e assim por diante.

Uma parte interessante mas que infelizmente não é muito útil no Brasil é que no livro ele trás uma série de gestos básicos para narrar-se Fate com jogadores que compreendam a ASL (American Signal Language). Infelizmente, existem algumas diferenças entre ela e a Libras (Linguagem Brasileira de Sinais) que torna isso infelizmente um pouco inútil.

Acima de tudo, a ideia é que você deve fazer sua lição de casa e tornar sua mesa acessível.

Além disso, verifique como jogadores que você tenha em mesa com tais condições preferem ser lidos: existem, como dito, aqueles que se enxergam como pessoa primeiro, condição depois, e existem aqueles que se definem primeiro pela condição. Além disso, tome muito cuidado com as palavras ao se referir a tais condições: eu mesmo estou me preocupando e evitando usar termos como deficiência ou necessidade especial, pois sei que tais termos podem ser agressivos a certa pessoas. Com certeza, enquanto alguém razoavelmente comum e “normal” (apenas tenho um grau meio alto de óculos), vou errar, e espero que qualquer pessoa que acredite que tenha algo a me corrigir nesse quesito me procure para que eu possa melhorar.

Por fim, como envolver condições como as tratadas em FAcT pode ter potencial sério para gatilhos, em especial em jogadores que possuem tais condições, o FAcT volta ao tema da Mesa Segura, mencionando os velhos conhecidos Controle Remoto e Carta X. Além disso, pode ser interessante utilizar mecanismos de Trigger Warning prévios para deixar claro que pode acontecer certas temáticas e debater com os jogadores até que ponto (se for o caso) pode-se ir.

FAcT trás também o conceito de “all access gaming”, jogo para todos. Envolve mais uma filosofia e princípio que regras: é a ideia de tentar tornar mais acessível PARA TODOS a experiência. Várias condições possuem problemas em espaços onde jogos ocorrem: cadeirantes podem ter problemas para entrar, cegos e pessoas com baixa visão podem não conseguir ler as fichas, e uma que não pensamos muito: pessoas surdas podem não conseguir participar devido ao fato de não conseguirem ouvir ou falar!

Para isso, FAcT faz uma série de sugestões de como lidar com isso, como criar um espaço em um evento onde pessoas surdez possam ser atendidas por narradores e staff preparados para tal, acesso facilitado a cadeirantes, etc… Claramente é bastante provável que você vai errar, mas a preocupação e o desejo e esforço de melhorar devem estar sempre presente.

Entrando no mundo das Condições

OK…

Dito tudo isso, chegamos às condições per se e seu uso em Fate (e em outros jogos).

Primeiramente, esqueça a ideia do “Kit do Psicopata Feliz!” A ideia aqui é que você faça personagens interessantes, não os trate como bônus ou regras.

Primeiramente, ele dá uma ideia do que pensar ao incluir uma condição como essas a seu personagem, sendo tal modelo expansível a todo tipo de situação ou condição fora do padrão social que não tenha sido atendida no FAcT: em especial, as questões de gênero foram uma baixa complicada, mas isso deve-se ao princípio do FAcT de colocar pessoas com tais condições falando sobre elas. Mesmo assim, tal gabarito é bem versátil e pode ser usado para quem queira de repente expandir.

Algumas das questões são:

  • Como o personagem obteve tal condição?
  • Que tipo de dispositivos de Acessibilidade ele usa? O que ele tentou e não funcionou?
  • Ele é totalmente daquela condição (cegueira, surdez) ou ele tem uma gradação da mesma (baixa visão, não ouve volumes baixos)
  • Como é a relação do personagem com tal condição? Como ele lida com as pessoas que o questiona sobre a mesma?

Lembre-se que nem toda condição é adquirida de maneira trágica, ao estilo Alessandro Zanardi1: algumas são de nascença (cegueira costuma ser uma delas) e outras podem vir da idade (surdez é bem comum em pessoas idosas).

Cada uma das sessões citadas em FAcT representa um espectro de condições e dicas de como lidar com as mesmas, que seguem um molde específico:

  • Uma introdução à condição com comentários sobre detalhes normalmente desconhecidos, como a já citada questão das 200 formas diferentes de nanismo e da diferença entre cegueira total e baixa visão (que pode ser considerada Cegueira Legal, como no Brasil)
  • Como trabalhar aquela Condição em Forma de Aspectos: a sugestão geral é refletir em duas vertentes, pelo como a condição restringe o personagem (Que diabo é isso de visão periférica?) ou no que a pessoa é capaz de fazer (Precisão rítmica total)
  • A relação entre Perícias e Condição. Por exemplo, um personagem totalmente cego pode ter Percepção, mas ele usa algumas formas de ecolocalização no lugar da visão;
  • A relação entre as Condições e Façanhas. Lembre-se que Façanhas são sempre positivas em circunstancias especiais. Pense, por exemplo, em um personagem cego que tenha uma Bengala com Taser que, além de dar +2 no Ataque, em caso de Sucesso com Estilo possa reduzir o Estresse em 1 para provocar o Estresse direto nas Consequências… Esse não seria um “ceguinho comum”
  • Condições para as suas condições. Essa regra especial é usada para indicar situações que podem complicar a vida dele por causa de sua condição. Um Autista, por exemplo, pode Colapsar diante de uma sobrecarga de estímulos visuais, ou um cadeirante pode se ver Sem o meu dispositivo depois de ser atacado por alguns ladrões que roubem sua cadeira de rodas.
  • Conselhos para o Narradores e Jogadores criarem personagens com tais condições e sobre como pensar tais condições em jogo. Para os Narradores também é incluído algumas dicas para criar-se Antagonistas com tais condições

As condições citadas no FAcT são:

  • Cegueira: incluindo também coisas como baixa visão, perda de campo, perda de visão de profundidade e sobre o uso de óculos, em especial para graus muito pesados, além de Daltonismo e outras faltas de sensibilidade de cores, como a acromatopsia
  • Surdez: inclui aí a surdez (em minuscula) para aqueles que recorrem ao uso de dispositivos cocleares, leitura labial e afins, além de falar), a Surdez (em maiúscula), para aqueles que apenas utilizam linguagem de sinais e as pessoas Duro de Ouvido (que tem problemas para ouvir volumes ou frequências específicas). Além disso, fala sobre a “cultura ouvinte” (ou seja, a ideia da normatividade na capacidade de ouvir), que acaba se aplicando a outras condições, e sobre porque você não deve fingir usar uma “linguagem de sinais” estilo Pig Latin ou Engrish, além da questão sobre as diferenças culturais envolvendo as múltiplas linguagens de sinais
  • Problemas de Mobilidade: as questões envolvendo cadeiras de rodas, muletas e similares, e como é legal transformar em sua muleta normal em uma Muleta de Estoque, embutindo uma lâmina na mesma!
  • Nanismo: aqui fui surpreendido, pois além da já citada questão das mais de 200 formas de nanismo, tem também detalhes sobre Nanismo Proporcional vs Nanismo Desproporcional, e coisas como a reposição hormonal quando necessário e as consequências de sua supressão. Ah, e evite os tropos do Anão/Fadinha/Elfo/Hobbit… Tyrion Lannister tá aí para mostrar que pessoas ananas podem também serem duronas e significativas.
  • Doenças Crônicas: aqui, assim como nas Questões de Mobilidade inclui-se uma gama extremamente grande de condições, indo de coisas como Diabetes e Anemia Falciforme a Doença de Crohm e Osteogenese Imperfeita (uma forma de Doença dos Ossos de Vidro) ou Analgesia Congênita (não sentir dor de forma nenhuma).
  • Espectro Autista: uma das mais comumente estereotipadas condições, essa sessão é especialmente interessante pois mostra que uma das coisas normalmente não apresentadas, a dificuldade de processamento sensorial de um personagem, pode não necessariamente ser algo ruim: pense no exemplo que citamos da pessoa que seja hipersensível a detalhes em imagens. Isso pode ser uma Façanha onde ele recebe +2 para detectar, por exemplo, mudanças em ondas sonoras. Uma das sessões mais complexas e interessantes, ela carrega toda uma série de sugestões para pensar-se personagens autistas, como que tipo de estímulos sensoriais o acalma ou o perturba (pense em um personagem que seja acalmado por textos em uma tela mas perturbado por sons de alta frequência), ou interesses específicos (como coletar compulsivamente chaves ou dados ou vidros de perfume), e como tudo isso pode se transformar em boas ideias do personagem.
  • Depressão e Ansiedade: o famoso “mal do século” e como foi vulgarizado e como às vezes uma pessoa em um dos estados pode enganar dizendo que “Está tudo bem!”
  • Esquizofrenia: difícil de ser diagnosticada e quase um “balaio de gato” para qualquer situação neuro-atípica que não caia em outras definições, cita também como curiosamente os efeitos e diagnóstico da mesma variam conforme a cultura: enquanto no ocidente existe o conceito das “vozes na mente que mandam matar”, na Índia tendem a ser mais “calmas”. É tão complicado descrever aqui quanto na leitura na sessão no FAcT, tanto quanto Depressão e Ansiedade e Autismo
  • Bipolaridade: aqui uma questão interessante é que tenta-se “desromantizar” a Bipolaridade como “doença de Artista”, já que existem dois tipos básicos de bipolaridade, onde a variação é baseada na potência dos momentos de mania, onde um tipo fica ainda sociável o bastante para tentar “extravasar” essa mania em algo “produtivo”, enquanto no outro a pessoa se torna perigosa e paranoica o bastante para demandar atendimento especializado.
  • Transtorno de Estresse Pós-Traumático: outro clássico deturpado com o shell-shock da época da Guerra do Vietnã, ela pode aparecer por vários motivos e de várias formas. Percepções de cheiros onde não deveriam existir, visões, terrores noturnos, flashbacks. Tudo isso pode acontecer com alguém com a PTSD

Suas Ferramentas e Condições

Por fim, depois das 52 páginas descrevendo as condições exploradas (e que nem cobrem todas as possibilidades), entramos em uma sessão mais relacionadas a regras de Fate.

Tais novas regras visam refletir as necessidades e consequências específicas relacionadas às condições mostradas, como a questão de surtos de Autistas que tenham sobrecargas sensoriais, cadeiras de rodas para cadeirantes ou o clássico óculos fundo de garrafa.

A primeira parte é sobre Condições. Novamente, como ocorre em Horror Toolkit e Dresden Files Accelerated, essas condições refletem potenciais eventos que podem ocorrer quando elas são ativadas, além das situações que podem levar a tais gatilhos. Também são usadas para estipular regras para que tais condições sejam limpas e a dificuldade de recuperar-se de tais condições.

De maneira geral, as Condições seguem as mesmas regras do Ferramentas de Sistemas, páginas 12 e 13, com a adição de condições Permanente, condições que só podem ser desmarcadas após um Marco Maior.

Por exemplo: um personagem Autista pode entrar em um Surto, por exemplo, quando em uma situação de hiper-exposição sensorial (lembre de discutir isso com o Narrador). Quando você marca ela quando, por exemplo, o seu personagem Autista com problema de hiper-exposição auditiva acaba no meio de uma Multidão Barulhenta, você deve optar por algumas coisas que vão acontecer com o personagem: ele pode ficar sem conseguir se expressar, ou expressar-se emocionalmente de maneiras explosivas; se ver paralisado, tendo que ser conduzido por alguém de confiança e por aí afora.

Cada condição trás as regras para marcar a caixa e para limpar tal condição. No caso acima, por exemplo, ele pode precisar ir para um local silencioso, ou com barulhos suaves (talvez com alguns sons de natureza e por aí afora) e permanecer por um bom tempo lá, recuperando seu foco e deixar de ter problemas com a sobre-exposição à qual ele sofreu.

Já na parte dos Dispositivos de Acessibilidade, eles podem ser delineados como Aspectos (como em Caronte, meu fiel cão guia) e Façanhas, como a Bengala Branca que ajuda o cego a se guiar pela rua, não podendo ter Aspectos de localização forçados contra ele.

Devido até a tal característica, FAcT sugere que se tratem tais Dispositivos como Extras, a serem compostos da mesma maneira, definindo Permissões e Custos e os Benefícios adicionais deles. Além disso, é interessante que existe uma lista de condições listadas que se beneficiam de certos Dispositivos: não apenas cegos se beneficiam de Cães-Guias, mas Autistas, pessoas com PTSD ou Ansiedade, por exemplo.

Mantendo o exemplo do Cão-Guia, a Permissão para ter um, segundo o FAcT (página 83) seria um Aspecto relacionado à condição específica, e um custo seria uma perícia Cão-Guia que poderia ser usada em momentos onde o Cão-Guia ajuda a pessoa (por exemplo, Percepção para notar locais perigosos e Atletismo para conduzir a pessoa por caminhos adequados). Além disso, sempre tem Façanhas que podem ser compradas, como o fato de seu Cão-Guia ser um Defensor Fiel, o que permite que você use sua perícia Cão-Guia para Defender-se de ataques físicos.

Além disso, ele mostra algumas variações para cada Dispositivo: imagina que maneiro seria os seus personagens acharem que o mago maligno cego é indefeso até que ele mostre seu Dracolich Guia? E o piloto de nave cego que tem um Metroid Guia?

Faça sua lição de casa… E a faça novamente!

Para finalizar, a partir da 101, o FAcT traz uma lista de recursos úteis (em inglês, infelizmente), incluindo coisas como as ferramentas de segurança de mesa como a Carta X e o Controle Remoto, e descrições de alguns gestos para usar-se em narrativa de RPG (e Fate em Particular) em ASL. Fica o pedido: algum leitor que se comunique em Libras e puder ajudar, entre em contato com o autor para podermos montar tal lista para Libras. I

Essa última parte, no Prototype Edition (onde estamos fazendo a resenha) ficou infelizmente fraca, já que as descrições não são suficientes: com as artes certamente ficará melhor.

E como “surpresa final”, ao fim do FAcT é incluído um conjunto de três páginas para uma ficha de Fate voltada a jogadores com baixa visão, onde a primeira página inclui os Aspectos, a segunda Perícias, Estresse e Consequências e na última Façanhas.

Abra as Portas

Esse livro vem em uma ótima hora, ainda que possa parecer insuficiente. Um material 4.5/5, ele tem muitos e muitos elementos interessantes não apenas para o jogador do Fate, mas para qualquer RPGista que tenha como intenção sincera tratar questões relacionadas a acessibilidade.

Uma coisa curiosa é que eu tive a experiência de narrar para pessoas sem visão e aprendi técnicas válidas para ajudar elas (como DIZER TODOS OS ASPECTOS DO PERSONAGEM), algumas inclusive que não foram citadas no FAcT.

Talvez o ponto fraco seja que ele não tem como cobrir tudo: faltou no meu ponto de vista muita coisa. Mas isso infelizmente é uma questão da própria mídia: seria desagradável (para dizer o mínimo) tentar criar um manual completo e acabar com um livro de 1000, 2000 páginas.

Mas o ponto importante é começar um debate sério e inclusivo sobre como lidar com essas condições, além de prover bases de onde você possa partir para, como citamos muitas vezes aqui e é citado no FAcT, fazer sua lição de casa e pesquisar mais sobre esses assuntos: a Internet está aí, para que ao menos você não comece do zero. Também as pessoas estão aí: se aproxime delas, de seus parentes, pergunte suas necessidades, as dificuldades, as partes que podem ajudar você a colocar coisas interessantes ao lidar com personagens e, acima de tudo, jogadores que tenham essas condições.

O RPG é um ambiente que se vê como inclusivo, mas na prática é extremamente hostil. Vemos deficiências (aqui é importante dar nomes aos bois) como circunstâncias ruins ou como estereótipos móveis.

É hora de parar de pensar assim, e pensar em pessoas com tais condições como PESSOAS.

Capazes de serem Dramáticas, Proativas e, acima de tudo, COMPETENTES.

Como todo personagem de Fate deve ser.

  1. Alessandro Zanardi foi um piloto de automobilismo que teve ambas as pernas amputadas após uma batida extremamente violenta em uma prova da Fórmula Indy (à época CART Racing - Fórmula Mundial), no autódromo de Lausitzring, na Alemanha. Para mais sobre o acidente, leia o artigo do site FlatOut (TW: gráfico) 

Domando o Fate - Parte 15 - Adaptando algo que eu gosto

Publicado Originalmente no Site da Dungeon Geek

Uma coisa muito comum no mundo de RPG é fazer adaptações. Na prática, boa parte dos jogos de RPG que as pessoas jogam são basicamente adaptações: ainda que os cenários comercializados normalmente sejam autorais (ou seja, em teoria, novos), muitos são bem carregados de referência. Além disso, o hábito de realizar-se adaptações deve-se à própria característica humana de querer, ao mesmo tempo, contar novas histórias e “pertencer a algo”: ao realizar uma adaptação de um cenário, sempre há chance de, por conta própria, “preencher lacunas” que, na opinião da pessoa, o autor deixou de lado.

Esse processo de fanfic é algo que é muito importante: pensando em séries como Doctor Who, Star Wars e Star Trek, elas só sobreviveram a longos hiatos graças ao processo dos fãs de criar em cima do que foi deixado previamente. Em maior ou menor grau de “oficialidade”, todos esses cenários sobreviveram a hiatos graças aos fãs e sua produção independente, ou a produções que foram feitas por comissionamento, como ocorreu no caso de Star Wars e seus módulos do período da AEG.

Dito isso, adaptar cenários em Fate não é algo difícil: o Fate, pela sua característica de focar na narrativa e pelo fato de trazer regras que suportam, retroalimentam e são retroalimentados pela narrativa, permite descrever facilmente cenários de todos os tipos de mídia. Veremos algumas dicas sobre como realizar tais adaptações, o que também pode ajudar em casos que você queira subverter ou modificar tais cenários.

Forme Repertório

Fate é um jogo que possui muitos elementos simples que podem ficar bastante complexos conforme a necessidade. Por isso, formar um “repertório de regras” é muito interessante.

Existem muitos jogos para Fate, desde materiais publicados gratuitamente por fãs do sistema quanto manuais caros e ricos em detalhes. O importante é consultar todos os materiais possíveis e formar seu repertório.

E por que isso?

Primeiro: uma série de jogos para Fate são baseados em Tropos genéricos, com algum tipo de plot-twist. Por exemplo: tanto Eagle Eyes quando Nitrate City possuem fundamentos em filmes noir, mas um se passa em Roma enquanto no outro monstros de filme B sairam de seus filmes e ocuparam a cidade de Los Angeles, a Cidade de Nitrato.

Desse modo, ao ler vários livros Fate, você vê como múltiplas regras podem, à sua própria maneira, enfatizar detalhes do cenário para formar o clima dos mesmos.

Segundo: ao conhecer os múltiplos cenários Fate, você pode utilizar alguns deles como base para jogos em diversos estilos, em especial se a sua adaptação for de algo que segue um tropo bem fixo, como Contos de Fadas ou Investigadores Adolescentes ao estilo Scooby-Doo. Para os casos citados anteriormente, você poderia utiilizar Loose Threads, Nest e Weird World News como base de suas adaptações, por exemplo, de Once Upon A Time ou Tutubarão.

Por fim: você pode aprender a lidar com tropos de maneiras diversas e interessantes. Por exemplo: Psychedemia pode tanto servir tanto para uma adaptação de Jogo do Exterminador (o tropo principal) quanto para algo similar a Matrix (tire a parte espacial e adapte a questão dos poderes paranormais) ou para um jogo com uma pegada de Babylon V (remova a parte da “Realidade Paralela” do Realm, ou a utilize se totalmente se for o caso). Por aí você vê como um jogo pode ser escrito de maneira flexível e ao mesmo tempo interessante com pouco texto.

Desse modo, ao fazer isso, você com o tempo vai percebendo os tropos que cada cenário envolve, como aproveitar eles e como combinar elementos de regras. O que permite que você economize tempo com aquilo que realmente fizer diferença, como mostramos no artigo sobre Extras.

A milhagem sempre irá variar

Antes de começar, é importante fazer uma ressalva: não importa o quanto você se aprofunde a tentar traduzir mecânicas e características de um cenário para o Fate, você NUNCA, JAMAIS vai alcançar 100% de precisão na adaptação.

Isso se deve pois cada mídia (e cada meio específico dentro de uma mídia) possui certas características específicas que não é replicável, não importa o quanto você dedique-se.

Um exemplo que podemos tomar no mercado brasileiro, dentro da mídia de RPG, é Tormenta: originalmente voltado para 3D&T, GURPS e AD&D, seu estilo foi se diferenciando até formar o Tormenta RPG que conhecementos, usando Sistema D20.

Isso deu um determinado tom ao sistema, mais “sério”. Entretanto, quando se usa o Tormenta Alpha (para 3D&T), ainda que o cenário “narrativo” seja o mesmo, tem-se a impressão que o cenário fica mais “galhofa”, devido à característica mais animesca do 3D&T, com superpoderes avassaladores e coisas do gênero.

Outro exemplo clássico é quando vemos adaptações de livros para filmes e vice-versa: NUNCA você consegue fidelidade absoluta, seja por limitações técnicas (como tentar descrever cenas de batalhas em livros), seja por limitações autorais (Senhor dos Anéis sem Tom Bombadil).

Portanto, não se sinta acanhado se o seu jogo não refletir 100% do cenário base da adaptação: isso é tecnicamente impossível. Concentre-se em trazer seu próprio foco à adaptação. Como dito em O Carteiro e o Poeta “A poesia não pertence àqueles que a escrevem, pertence àqueles que necessitam dela.”

Dito isso, vamos começar a pensar.

Narrativa primeiro, regras depois

Uma coisa importantíssima e que o Fate permite fazer bem fácil: foque primeiro na narrativa que você quer fazer.

Em um primeiro momento, leia a história e evite qualquer regra que o cenário tenha em sua origem. Isso vai ajudar você a procurar as coisas que são mais interessantes em termos narrativos e traduzir os mesmos em Aspectos. Isso pode te ajudar a trazer as regras necessárias para fazer aqueles aspectos serem “mais” que representações narrativas.

Por exemplo, se pensarmos nos Reinos de Moreania, um dos Aspectos importantes do cenário são Os Herdeiros dos 12 Animais que se tornaram humanos, e isso vai já nos indicar que vamos precisar de alguma regra que lide com Os Herdeiros Moreau, que possuem algumas capacidades a mais que o ser humano. Como isso será feito, ficar para um segundo momento.

Outro exemplo é, ao pensar em Perry Rhodan, uma ficção científica clássica alemã, existe uma raça chamada de Halutenses. Gerados a partir de criaturas conhecidas como Bestas Feras, são inteligentes, muito fortes e podem comer basicamente qualquer coisa. Entretanto, de tempos em tempos, entram em uma fase que chamam de “Lavagem Forçada”, quando abandonam seu planeta Halut para satisfazerem sua curiosidade incessante.

Por meio dessa descrição rápida e bastante simplória de um personagem, temos a existência de duas possíveis raças, os Halutenses e as Bestas-Feras. Os Halutenses são Inteligentes e Muito Fortes, podem Comer Basicamente qualquer coisa e, de tempos em tempos, Fazem uma “Lavagem Forçada”, saindo pelo Universo para satisfazer sua Curiosidade.

Vários Aspectos, não é?

Então, focar na Narrativa te ajuda a “batelar” as ideias, encontrar os Aspectos mais promissores para o seu jogo e potencializar coisas que você poderá transformar em regras.

Claro que vale a pena enfatizar que você NÃO DEVE realizar um Kitchen Sink e tentar explodir TODAS as regras possíveis. Faça suas notas e vá explorando as coisas conforme você perceber que elas serão interessantes no seu jogo.

Começando a moldar regras

Dito isso, a coisa começa a ficar mais interessante, pois agora precisamos moldar o cenário em termos de regras de Fate.

Para isso, vale a pena citarmos novamente o que dissemos anteriormente ao falarmos de Extras:

  • Aspectos para definir coisas que mudam a história
  • Perícias para novos contextos em ações
  • Façanhas para realizar coisas extraordinárias
  • Estresse para coisas consumíveis

Como posso visualizar isso em personagens ou situações?

Vamos mostrar alguns exemplos:

Aspectos como parte das regras pode ser legal quando você precisa representar tipos específicos de personagem, se isso for necessário de maneira ampla. O exemplo clássico são em séries de Ficção Científica, onde você pode transformar as raças dos personagens em Aspectos que denotem e possam ser usados para invocar ou forçar situações. Por exemplo em Babylon V os Narn tendem a ser ritualisticos e guerreiros, além de não gostarem muito dos Centauri, que por sua vez são decadentes ainda que cultos. Desse modo, tanto ser um Narn quanto ser um Centauri pode ser algo interessante para os Aspectos.

Perícias são interessantes de várias formas, em especial quando você pensa em possibilidades de colocar isso como contraponto entre o uso como Perícia ou como Abordagem: muitas vezes, se todos os personagens puderem fazer a mesma coisa ou serem similares, usar Abordagens pode ser interessante ao deslocar o eixo da ação menos do o que está sendo feito e sim em como a coisa é feita. Entretanto, talvez você queira usar Perícias para enfatizar especializações, fragmentando, modificando ou aumentando o nível de perícias, fazendo com que os times tenham os mais diversos focos. Apenas tome cuidado, nesse caso, de evitar uma super-especialização que acabe “capando” o personagem se ele sair de sua “zona de conforto”. Além disso, existem várias outras formas de medir-se competência dos personagens, como falamos lá atrás ao falarmos de perícias.

Façanhas são um dos pontos fortes em qualquer adaptação: como elas, como dissemos acima, representam coisas extraordinárias, elas sempre vão ser muito focadas aqui. Equipamentos, poderes, capacidades, tudo aquilo que é especial pode ser representado como Façanhas. E se combinarmos isso com o que vimos anteriormente sobre Trilhas de Façanhas e coisas do gênero, certeza que teremos como adaptar até mesmo situações ao estilo Dragon Ball Z, com seus Níveis de Super Sayajin tendendo ao infinito: basta encadear eles de modo que um seja façanha do outro.

Estresse e Consequências são um pouco mais complicados de valorizar: em geral, o sistema de Trilhas de Estresse Físico e Mental, mais as consequências funciona bem. Mas aqui existem algumas coisas que você pode fazer de diferente e que tornem seu jogo mais interessante:

  • Crie uma nova Barra de Estresse de um tipo adequado para o jogo. Isso pode ser legal quando ou você tem um recurso que pode ser usado para energizar suas ações, seja uma Barra de Chi para um Street Fighter ou uma de Momentum para um Runner de Mirror’s Edge, ou algo que pode representar recursos vitais que podem se degradar com o tempo, como a Sanidade em um jogo de Horror ou Recursos em um jogo Cyberpunk. Se você combinar isso com regras de Esforço Extra e/ou de Caixas de Uma Tensão (como mostradas no Ferramentas de Sistemas, página 49), você pode desenvolver toda uma gama de sistemas interessantes. Essa, inclusive, foi a forma que usamos para definir a questão do Escopo do Fae Guardians, enfatizando que caso algum deles gastasse todo seu Escopo, ele sofreria uma Sobrecarga, dando lugar ao personagem de fábulas;
  • Use Condições, como mostrado no Ferramentas de Sistemas, página 12. A grande vantagem disso é tornar bem mais intuitivo determinar as Consequências das Ações dos Personagens. Isso fica ainda mais interessante quando você usa regras como Sem Estresse (Ferramentas de Sistema, págian 49) ou um sistema de dano mais simples como o definido em Uprising (uma caixa em caso de sucesso no ataque, duas em caso de sucesso com estilo), podem tornar o combate ainda mais brutal e rápido, sem falar que permite que você restrinja e impeça que o jogador marque Condições que não fazem o menor sentido em relação ao que aconteceu com ele;
  • Jogue sem Estresse ou sem Consequências: sem Consequências o jogo flui rapidamente, e pode ser interessante quando as coisas forem tudo-ou-nada, sem falar que pode ter o ar de Barra de Dano que alguns jogadores mais old-school podem apreciar, em esepcial quando combinado com Esforço Extra. Sem Estresse, cada ataque sofrido pode ter uma consequência terrível, já que não existe o Estresse como “colchão narrativo” para o personagem. Isso sem falar que pode representar muito bem cenários de perigo total
  • Não usar nem um nem outro: essa opção ficou muito visível no Fate Horror Toolkit, que em seu Capítulo 6, sobre Survival Horror, traz uma solução onde você pode escapar de danos marcando Consequências ou sacrificando NPCs com os quais o personagem tenha ligação. Se você pensar bem, por esses sistema você pode tornar tudo AINDA MAIS brutal: o personagem se sacrifica ou a outrem? Os personagens ficam MUITO frágeis, o que pode ser o que você quer

Extras… Extras… Extras… Badger, Badger, Badger, Badger, Badger

Esse é um ponto onde é muito fácil se perder a mão: quando você vai criar Extras e Fractais.

Como dissemos anteriormente ao falarmos sobre Extras, evite fazer o Kitchen Sink: você não precisa tratar tudo como se fosse personagens. Existem situações interessantes para isso, e um excelente exemplo tanto de solução quanto de problema é Mindjammer, que traz fractais para Civilizações, Planetas, Espaçonaves, Culturas, etc, etc, etc.

Isso pode ser uma solução porque ele já traz todos os subsistemas para naves e afins, mas pode se tornar um problema se você tentar usar vários desses subsistemas, pois você vai se pegar tendo que administrar muitos Aspectos, Perícias, Façanhas e assim por diante.

Dito isso, o ideal é sempre manter as coisas mais simples possíveis, mas não se fazer de rogado quanto ao adotar Extras e Fractais.

E para isso, tanto o livro do Fate, em seu Capítulo 11, quanto os livros Ferramentas de Sistema e demais Toolkits, possuem todo o tipo de Extras que podem se aplicar ao seu jogo.

Se, ainda assim, precisar criar algum Extra ou Fractal, procure manter as coisas mais simples de modo que tudo fique interessante.

Alguns Extras que vale a pena mencionar aqui, já que aparecem DEMAIS em muitas adaptações:

  • Arma/Armadura (Fate Básico, 253): como falamos em muitos momentos, sempre mencionamos que Fate sofre do “Efeito 3D&T”, onde não importa, em termos de regra, que tipo de equipamento você está usando, em especial Armas ou Armaduras. Nesse subsistema, que o Fate Básico mostra na Página 253, funciona de maneira bem interessante: o nível de Arma se soma a todo ataque que use aquela Arma que “entre” (ou seja, que passe a Defesa do Personagem), enquanto Armadura reduz a tensão de estresse sofrido. Esse pode ser interessante de se avaliar não apenas para dano físico, mas para mental: uma Rezadeira pode ter, por exemplo, Armadura: 2 para resistir a tentações ou horrores, enquanto um Ricaço pode ter um Ataque de Canibalização que funciona como Arma: 2 contra alvos do mesmo tipo de mercado que os personagens;
  • Superpoderes (Fate Básico, 256): Esse subsistema é bem interessante pois ele cobre basicamente qualquer tipo de poder especial: superheróis, magia, paranormalidade, mutações… Não interessa.
  • Equipamentos Especiais (Fate Básico, 259): mostra como você pode criar todo tipo de equipamento especial, desde Espadas de Gel Cinético até A Millenium Falcon, e te dá todo tipo de sugestão a seguir. Isso se combina legal com a parte de Veículos e Organizações (página 263)
  • Magia (Fate Básico página 265 e Capítulo 8 do Ferramentas de Sistemas): esse é um que, no Ferramentas de Sistemas, é MUITO completo, com muitas variações, usando Façanhas, ou com Aspectos e Perícias, ou com outras combinações diversas.
  • Raças (Ferramentas de Sistema, página 31): algumas possibilidades interessantes, envolvendo, por exemplo, uma nova perícia Elfo que mostra o quão bom um personagem é enquanto Elfo, além de Aspectos e assim por diante;

E assim por diante… Tem muitos subsistemas em jogos Fate: uma dica séria é ler os jogos a série Worlds of Adventure, pois muitos deles trazem subsistemas bem legais. Apenas para citar rapidamente coisas legais dele:

  • Magias e Escala em Secrets of the Cats
  • Populações e Tensões em Loose Threads
  • Talismãs em Nest
  • Aptidões Psíquicas em Psychedemia
  • Culturas Alienígenas em Andromeda
  • E A Convergência em SLIP

E assim por diante.

E uma dica especial para tradução de regras de RPG: procure perceber que tipo de situação aquela regra procura tratar e considerar a mesma em termos de regras do Fate. Um exemplo é Alinhamento de D&D: ele pode ser um Aspecto que pode incluir uma barra de Tensão de Estresse ligado aos “pecados” (ao estilo que existe em Storyteller), ou ainda uma Tensão ao estilo de Loose Threads, entre outras opções.

Qual a melhor opção de regra?

Resposta rápida: A que funciona para o seu jogo

Resposta correta: na prática, vai depender do estilo de jogo. Você vai precisar experimentar e verificar o que funciona para o estilo do jogo e para seu estilo específico de narrativa. Alguns Fractais e Extras e regras podem ser bem imersivas e bem atreladas ao jogo, como A Convergência de SLIP, onde a PRÓPRIA CAMPANHA ataca os personagens (sim, é estranho desse tanto). Entretanto, tome muito cuidado para não saturar a sua adaptação com tantas regras que você possa acabar se pegando fazendo accountability de Aspectos e Façanhas e Extras e poderes e perca o fluxo da narrativa.

Obviamente, você PODE sim querer um sistemas de regras BEM táticas para uma adaptação de Star Wars onde você vai ter a Corrida da Estrela da Morte, ou um sistema mega-tático de esgrima e duelos para seu jogo de Os Três Mosqueteiros. Isso de modo algum é errado. Apenas tome cuidado para que você não se pegue incluindo coisas que possam simplesmente inviabilizar seu jogo, tornando-o arrastado demais, ou ao mesmo tempo não dando a devida importância para o crunch em uma adaptação de Assassination Classroom que simplesmente não dê aos jogadores a chance de matar o Koro-Sensei.

Dito isso, o ponto fundamental de uma boa adaptação para Fate é o Equilíbrio: no Fate, tudo em termos de regra é (ou deveria ser) voltado para enfatizar a narrativa e as características proativas, dramáticas e de competência da pessoa. Se isso não for levado em consideração, você certamente vai sofrer com regras demais ou de menos, tendo algo que reduza a velocidade do sistema ou tire os detalhes táticos que podem adicionar à narrativa. Afinal de contas, algumas das melhores cenas do cinema e dos livros dependem de eventos com muitos detalhes táticos, como a Batalha de Pellenor, a Luta em Mustafar entre Obi-Wan e Anakin, a Batalha do Beruna ou mesmo evitar que a Desenholândia seja riscada do mapa.

Conclusão

Vimos que, na prática, adaptar sistemas para Fate é uma arte quase tão complexa quanto para qualquer outro sistema, demandando conhecimendo do cenário e do Fate (além do de qualquer sistema do qual você está trazendo o cenário), além de nunca ficar 100% perfeita, já que existem detalhes que não podem ser “migrados” de uma mídia (ou meio dentro da mídia) de maneira perfeita. Também percebemos que o Fate oferece toda uma gama de ferramentas sobre como realizar uma boa adaptação, incluindo em seus materiais toda uma gama de regras que você pode incorporar ao seu jogo conforme a necessidade.

Por agora, ficamos por aqui…

Até a próxima, e role +4.

Saiba Mais (3134 palavras...)

Domando o Fate - Parte 14 - Os Principais Erros de Principiante no Fate

Publicado Originalmente no Site da Dungeon Geek

Duas verdades fundamentais sobre a vida:

  1. Você vai errar cedo ou tarde em qualquer coisa que você faça
  2. Só quem não faz não tem chance de errar

Dito isso, percebo que muitos iniciantes em Fate (e em RPG em geral) cometem alguns erros comuns.

Isso não é problema: má compreensão e entendimento errôneo é comum quando você não está habituado àquele conjunto de regras. Seria estranho ver alguém cujo conhecimento de regras fosse instantâneo: isso não é realista.

Mesmo eu demorei muito tempo até entender as regras do Fate, e comecei a conhecer o Fate ainda na versão 2.0, e cada mudança de regras mexeu no meu entendimento do jogo e, portanto, foi quase como um recomeço.

A ideia aqui não é fazer julgamento de valor: isso seria não apenas não-produtivo, como estúpido. Aqui vamos citar alguns erros comuns que iniciantes cometem (e alguns nem chegam a ser erros no sentido exato da palavra) e dar sugestões de como os contornar.

Em vários momentos iremos dialogar nesse artigo com artigos que escrevemos anteriores. Isso porque muitos desses erros derivam de uma inexperiência e incompreensão de como funciona o Fate e o seu foco. Desse modo, esse pode ser um bom momento de conversarmos um pouco sobre isso.

Vamos então a algumas coisas bastante comuns de serem feitas

1. Mecanicismo Excessivo

Vamos começar com um clássico: o Mecanicismo Excessivo.

Isso aparece de duas formas:

A primeira é a do Narrador que pensa, por exemplo, em ter duzentas perícias, ou então uma lista gigantesca de Façanhas, ou ainda utilizar um Fractal monstruoso e cheio de minúcias.

A segunda é a do jogador que, sem entender as nuances do Fate, fica procurando os Poderes Especiais, as Perícias Específicas e as regras detalhadas.

Isso não é problema nenhum, ter regras detalhadas.

Entretanto, a pergunta que você deve se fazer é “essa regra é realmente necessária?”

Fate é um jogo narrativista, um jogo onde quem dita as interações não são os valores da ficha ou o estilo do jogo, mas a narrativa do jogo. Podemos dizer que a Narrativa é o Rei. Importante ressaltar que ela não ELIMINA as regras, mas ela dita de certa forma o que deve ser feito ou não com as regras.

Isso meio que mata o comportamento padrão do jogo, onde o lado do jogo é quem dita as regras: se a regra não existe, você não faz. Aqui, se a regra não existe, ela pode ser moldada ou criada on-the-fly, ou obtida de um repertório desenvolvido pelo narrador. (“Oh, Toodles!”, lembram?)

Quando comecei a fuçar com o Fate Básico, ainda em inglês, fiz várias experiências com o mesmo, e meu conhecimento das versões do Fate anteriores ao Fate Básico e de seu avô, o Fudge, me permitiriam evitar algumas das Armadilhas.

Entretanto, eu mesmo caí nesse problema: quando fiz minha adaptação de Pole Position, o desenho clássico dos anos 80 de corredores que combatem o crime, fiz um Fractal inteiro de veículos que era basicamente uma variação do Fate Acelerado. Isso em si não é errado… Mas imagine um jogo one-shot onde os jogadores criassem seus próprios veículos e módulos, além dos personagens (os módulos eles próprios personagens plenos segundo o Fate Acelerado)? Tempo demais desperdiçado ao criar personagens complexos demais em uma situação onde pode acabar sendo desnecessário tanta complexidade.

Como evitar?

A primeira dica é: deixe fluir o jogo. Fate tem uma característica maravilhosa que suas regras são concretas o bastante para terem impacto real no jogo, mas abstratas o bastante para poderem ser customizadas durante o mesmo sem o quebrar.

Segunda dica é: não sobreprepare em excesso… Você pode considerar interessante deixar alguma “gordura” de regras preparadas para situações especiais. Isso pode ser bom, mas apenas tome cuidado para que isso não acabe se transformando em algo excessivo.

Terceira dica: monte seu próprio Toodles. Tenha em sua mente regras simples que você possa aplicar em momentos diversos de maneira rápida. Quando pensei na série Oh, Toodles!, foi visando isso: demonstrar algumas das ferramentas mais interessantes que notei durante esse tempo envolvido com o Fate e com isso oferecê-las para que outros narradores montem seu arcabouço.

E para jogadores, não se preocupe sobre tentar achar muitas regras. Em caso de dúvidas, consulte o narrador para que o mesmo diga como (e se) uma nova regra irá funcionar. Você é livre para dar sugestões, mas atente ao fato do narrador ser quem advoga as regras, ou seja, as interpreta dentro do contexto do jogo específico: mesmo em Fate, duas situações similares podem ser entendidas de maneiras diferentes.

2. “Era assim no sistema de onde vim”

Alguns jogadores mais experientes em outros jogos, mas recém-chegados em Fate, tendem a colocar sua experiência em outros jogos como uma base para entender o que está acontecendo em Fate.

Esse é um comportamento comum e que ocasionalmente funciona, mas quando o jogador vem de jogos onde a Narrativa não é tão importante e o jogo dita o fluxo dos eventos,isso pode ficar complicado, pois pode resultar na situação anterior rapidamente.

Além disso… Em Fate, você pode resolver situações de maneiras imprevistas: por exemplo, em Weird World News são usadas as regras de Conflitos para rolar uma perseguição ao estilo Scooby Doo. E você sempre pode resolver um combate de MMA usando as regras de Disputa, ao invés de Conflitos, se você não tiver nenhuma regra especial a ser usada (Iron Street Combat pode oferecer tais regras).

Fate mantem pouca similaridade com os sistemas tradicionais de RPG, por isso é muitas vezes complexo tentar emular o estilo “tradicional” de jogo no Fate, ainda que seja possível (e até por que não dizer simples) transportar e emular as regras dos sistemas mais tradicionais, incluindo o Mais Jogado, sem muitos problemas.

Entretanto, deve-se tomar cuidado de evitar um possível engessamento das regras do Fate ao recorrer-se a isso. Se a proposta do jogo e for essa e o grupo estiver disposto a tal engessamento, não há problema: às vezes, em um jogo voltado a um estilo determinado de jogo, um engessamento pode ser válido, como acontece no Iron Street Combat e em Weird World News. Porém, é melhor evitar tal engessamento se isso puder ser evitado

Como evitar

Aqui é lembrar sempre que a flexibilidade do Fate é que o torna interessante. Além disso, lembrar sempre que “Entre regra e narrativa, a narrativa vem primeiro”: você não precisa trazer todas as regras, mas sim trabalhar suas necessidades durante o jogo. Isso é interessante pois cria uma forma orgânica de tratar não apenas o cenário, mas as mecânicas que o envolve. E isso é extremamente positivo, pois mecânicas que são mais relevantes podem aparecer, enquanto outras menos relevantes podem inclusive serem abandonadas ou resumidas em importância.

Também possui o outro lado da moeda: se o teu jogo está planejado para um determinado tipo de conceito, definir regras bem explícitas e rígidas que reforcem os tropos do conceito é uma ótima ideia. Jogos como Loose Threads, Weird World News, Uprising, Strays, Til Dawn e Iron Street Combat visam enfatizar certas experiências, e suas regras procuram enfatizar tal coisa. Obviamente, isso pode tornar “desvios” mais complicados de se lidar, mas ainda assim você pode utilizar isso para tornar o jogo ainda mais palatável para iniciantes.

3. Trazer tudo, incluindo a pia da cozinha

A super-preparação, o maior inimigo do narrador do Fate.

Uma das coisas mais comuns que acontece ao começar a aprender o Fate é achar que ele é “incompleto”. De fato, isso é uma aparência bastante óbvia, haja visto o fato que as regras parecem se focar apenas nos eventos mais simples.

Então, quando você percebe que o Fate tem o sistema do Fractal, você começa a “pirar” e fazer tudo de tudo, tornando mesmo uma arma simples algo gigantesco com grandes nuances e complexidades de regras.

Isso é completamente natural: ao descobrir um novo sistema, é normal e interessante tentar explorar o mesmo e ver até onde se consegue ir sem quebrar o mesmo.

O problema é que isso pode resultar, cedo ou tarde, em você ter uma “superadministração”: você ter tantos Aspectos, Perícias, Façanhas, Extras, Fractais e todas as regras envolvidas e com isso perder-se nas interações entre os mesmos. De fato, a maior complexidade do Fate não está nos elementos individuais, mas sim nas interações envolvidas entre eles, ou mais exatamente da quantidade potencialmente abissal de interações.

Isso é natural de qualquer sistema: mesmo os sistemas OSR sofrem quando começa a se incluir elementos demais, não importando se são previstos originalmente ou homebrews. Esse problema não é exatamente um problema do Fate, mas graças ao Fractal, isso fica potencialmente perigoso, em especial quando se tem baixa experiência. Acreditem em mim, eu já fiz isso, e você cedo ou tarde fará.

Como evitar

Keep It Simple and Safe (KISS) é a regra básica: se não houver uma necessidade narrativa e/ou mecânica REAL para aquela mecânica entrar em jogo, não a coloque. Tente utilizar sempre as opções mais simples que atendam a sua necessidade.

Se o tipo de arma não fizer diferença no jogo, se uma espada ou faca for a mesma coisa, se usar uma seta de zarabatana ou a BFG 3000 não fizer diferença, você NÃO PRECISA de uma mecânica de Armas.

Se você ser um plebeu sujo no meio do chiqueiro ou o Rei Luis XV em Versalhes não fizer diferença, você não precisa de mecânicas de status social.

Se você ser um pequeno time com apenas um carro e um motor, ou for a Penske ou a Ferrari não fizer diferença, você não precisa de mecânicas de veículos.

Isso é a ideia de “entre narrativa e mecânica, a narrativa vem primeiro.” É ela quem vai ditar se e quando uma regra será usada.

Obviamente, existem regras que se acoplam melhor que outras, mecânicas que, ao serem inseridas ou removidas, impactam mais ou menos nos personagens em termos mecânicos e narrativos. Certamente você perceberá logo de cara quando uma determinada mecânica mais complexa será necessária: em um jogo de magos urbanos, um bom sistema de magia se faz necessário. Em um jogo medieval histórico, um bom sistema de status social e suas implicações é importante. Em um jogo de revolucionários contra um governo corrupto distópico, um sistema que reinforce mecanicamente a repressão narrativa do governo é sine qua non. Essas mecânicas podem ser o quão complexas forem necessário. Isso permite que os cenários explorem mecanicamente coisas que ditem o clima da aventura, como acontece em Til Dawn com batalhas de Drag e em Weird World News com sua mecânica estruturada para uma aventura ao estilo Scooby Doo.

De outro modo, evite a complexidade: pode acreditar, se uma mecânica for relevante ao jogo, ela vai aparecer e você vai logo se ver pensando em ideias sobre ela. E facilmente você vai as integrar ao jogo

4. “Esse personagem é inútil!”

Ah…

O Clássico “Esse personagem é inútil!”

Muitos jogadores (e narradores) se vêem em uma situação assim, onde o jogador vê a ficha e, a não ser que ele tenha algo OBVIAMENTE focado em combate, ele acredita que o personagem é inútil.

Isso (na minha opinião pessoal) ocorre em especial porque a maior parte dos RPGs mais clássicos se foca em regras de combate, o que (somado a uma série de detalhes de construção que não cabem aqui) faz com que um personagem com pouca enfâse em atributos físicos e de combate resultem em um personagem potencialmente chato (sem falar de vida curta).

E para não ser injusto, esse problema também ocorre, por exemplo, em Vampiro, com o famoso Toreador artesão com 5 de Briga (se fosse um Artista marcial, ao menos); ou em GURPS, com o famoso “Kit do Psicopata Feliz”, o fato de comprar a combinação de Fúria, Sadismo e Sanguinolência como forma de justificar uma interpretação Murderhobo além de obter alguns pontos de personagem no processo para melhorar as “chances de sobrevivência” do personagem.

E isso acaba vazando para Fate, em especial com jogadores experientes em jogos clássicos, já que eles carregam consigo as idiossincrasias do sistema clássico.

Como evitar

Primeiramente, lembrar que no Fate não existe apenas a ação de Ataque durante um Conflito: um personagem pode tentar virar uma mesa para Criar uma Vantagem de Cobertura para se esconder de tiros, ou ainda pode tentar Superar essa mesma Cobertura para tirar inimigos de sua proteção.

Além disso, Conflitos em Fate não são necessariamente apenas físicos, ou mesmo como um todo físicos. O Bárbaro do outro lado é um Idiota (você descobriu esse Aspecto)? O provoque o bastante para fazer ele ficar Puto de Raiva (Consequência Suave) e deixe ele vir para cima de você enlouquecido… De modo que seu guerreiro o pegue de jeito com a espada direto na barriga!

Em especial a ação de Criar Vantagem é muito útil nesse quesito: aquele Bardo que normalmente pareceria inútil pode atochar Invocações Gratuítas em uma Canção de Escárnio humilhando seus inimigos que, enlouquecidos, atacarão de maneira descuidada, o que permitirá aos “batedores” do grupo utilizarem tais Invocações Gratuítas para tornar o ataque ainda mais poderoso, aproveitando de brechas e pontos cegos para tornarem seus ataques mais avassaladores.

Além disso, Façanhas existem para prover meios de ataques “incomuns”: você não tem Lutar? Já Li Sobre Isso em Conhecimentos pode te ajudar (“Segundo o Livro Hong Kong do Kung Fu…“ - Hong Kong Fu). Não tem Atirar? Bem… Compre uma façanha de Criador de Explosivos que adicione à perícia de Ofícios a ação de Ataque. Ou mesmo utilize sua Façanha “Por Favorzinho!” para trazer para jogo um bando de Pais Raivosos quando você precisar atacar um Valentão.

E lembre-se: Aspectos usados de maneira Inteligente sempre são uma ótima saída. É um Diplomata? Provavelmente será capaz de trazer Forças da Lei para lutar por você. Você é um “Mago Franzino”? Clássica Chuva de Meteoros para isolar os inimigos de você.

Fate premia jogadores que pensem em todos os seus recursos e saibam ter soluções criativas com as mesmas. Não basta ter perícias altas, mas saber usar seus Aspectos, Façanhas e, acima de tudo, as ideias para os usar de maneira inteligente para que você se saia bem.

6. “Meu personagem não evolui!”

Outro clássico vindo do design de jogos mais tradicional é a aparente falta de evolução dos personagens em Fate.

Fate possui algumas restrições visando tornar o crescimento do personagem orgânico: pontos de perícia sendo adicionados aos poucos (nos Marcos Significativos), Pirâmide e Colunas, Perícias-Pico, etc, o tornam menos sujeito ao min-max, ao mesmo tempo que o torna um pouco menos evoluível, ao menos visto de fora.

Isso se deve em especial por não existir o conceito de Experiência como em jogos clássicos (e alguns não tão clássicos, como o Cypher e os jogos Powered by The Apocalypse), onde o jogador tem uma visão meta, abstrata, do crescimento do Personagem.

Além disso, a maioria dos sistemas costumam tratar evolução como crescimento em Poder: raramente você vê personagens nesses jogos mudando, e em geral é como uma coisa que não resulta em perda (como no caso do sistema de multiclasses), onde na prática você apenas adiciona novos poderes a seu repertório, sem deixar de ter aqueles que você tinha previamente. Isso acaba resultando em maximizações mecânicas que em termos narrativos não acrescentam nada exceto incongruências (quem não lembra do combo do pegar 1 nível de Ranger do D&D 3.0? Até Elminster tinha 1 nível de Ranger!).

Poucos sistemas tratavam a evolução como mudança: Call of Cthulhu tinha algo assim na questão dos Mythos, onde quanto mais você aprende sobre os Mitos, menor sua sanidade máxima pode ficar. Você vai ficando corrompido pelos conceitos alienígenas e inumanos dos Grandes Antigos, e isso muda você, sem falar na questão da loucura.

Como evitar

Aqui a forma de evitar seria…

… Não tem como.

Fate tem uma previsão de muitos pontos de mudança (os Marcos), onde o personagem pode ir se readaptando e evoluindo: habilidades antigas podem ser substituídas enquanto novas entram em seu lugar. Um guerreiro cansado do sangue pode se unir a um Culto da Paz, enquanto um pacifista dizimado pelo ódio após uma tragédia pode se tornar um assassino serial.

Enfatizar tais momentos é a melhor coisa para o narrador: antes de oferecer um Marco Significativo, dê alguns menores, para os jogadores ajustarem suas perícias conforme o que eles vão percebendo ser mais interessante. Com o tempo, eles irão perceber que tais ajustes permitem fazer com que o personagem aparente mais poderoso em coisas que são “mais importantes”, mas ao custo óbvio (e coerente) na redução das competências não usadas.

Lembre que as Perícias podem significar muitas coisas: Recursos, como exemplo clássico, não é apenas uma representação de seus recursos financeiros, mas também a capacidade de obter e exercer bom uso de Recursos. Se o seu personagem for o clássico protagonista de Isekai, o fato de você não ter mais o seu dinheiro pode não ser tão problemático: você logo perceberá como levantar novamente recursos financeiros.

Para Façanhas, sempre existe a opção da redução da Recarga para obter-se novas Façanhas. Lembre que isso, entretanto, tem um custo: sua Recarga sendo menor, o personagem terá menor, digamos assim, livre arbítrio, já que terá menos chances de recusar Forçadas nos piores momentos, ou terá que contar com todo o seu arsenal de ideias (e uns bons dados) para não precisar Invocar seus Aspectos. Esse é o famoso dilema Batman vs Superhomem: o Super-homem tem menos “Coisas legais” (Façanhas), mas consegue fazer coisas mais “épicas” graças ao seu arsenal de Aspectos e Pontos de Destino, enquanto o Batman, ainda que tenha mais Façanhas, ainda se vẽ arraigado a uma imagem que tem que sustentar a todo custo, devido à baixa Recarga.

Deixando tudo isso a claro, nada impede que você ofereça recursos adicionais aos personagens, dependendo do cenário. Em Young Centurions, todo personagem jogador (e alguns do narrador) tem uma Façanha Especial, a Façanha Centuriã, que é levemente mais poderosa que as Façanhas Comuns. Em Wearing the Cape, cada personagem heróico pode escolher Façanhas que mudam conforme seu Tipo de Poder, que também oferece certos benefícios ou impedimentos em termos de narrativa (por exemplo, um personagem Atlas pode voar por ter a Permissão vinda do Tipo de Poder, enquanto um Merlin é capaz de usar e identificar magia apenas pelo fato de ser um Merlin), entre outras coisas.

Porém, sempre se foque na noção da evolução enquanto a “mudança do personagem”. O Frodo Bolseiro sobrinho de Bilbo não era o mesmo que o Frodo Portador do Anel, que não era o mesmo que o Frodo-dos-nove-dedos. Sam Gamgi que era apenas um Jardineiro não era o mesmo que Sam Gamgi que se tornou Senhor de Bolsão e Prefeito do Condado. E assim por diante.

Os personagens mudam, se tornam mais aptos para os desafios que vão surgindo.

Ou seja, evoluem.

7. “Meus jogadores não colaboram!”

Por fim, vem o caso clássico do jogador que “vem com vícios”: ele tem uma expectativa baseada no seu sistema favorito e não compreende como o Fate funciona.

E isso também vem com duas situações perigosas envolvidas:

  1. O “você está interferindo com a minha agência”
  2. O “Mas não era isso que eu queria!”

Fate é um sistema Narrativista, um estilo de sistema de RPG ainda muito incomum (ao menos no ambiente brasileiro). Desse modo, jogadores experientes, ao virem para o Fate, carregam seus “vícios”, as tarimbas que aprenderam em outros sistemas e o estilo e formas de pensar-se o jogo dos mesmos.

Que muitas vezes não condizem com o que é proposto no Fate.

Ao mostrar-se como um sistema narrativista, a primeira coisa é “entre regras e narrativa, a narrativa vem PRIMEIRO!” Isso não apenas quer dizer que o que vale são as ações, mas que as mesmas devem ter impacto e serem retroalimentadas e impactadas pelo sistema.

Em alguns jogos mais tradicionais, em estilos mais tradicionais, certas regras podem ser ignoradas ou torcidas. No Fate, curiosamente, isso não é tão possível, pois as regras não são ignoradas e torcidas pelo estilo de jogo (sim, Carisma 8 em OSR - estou falando de você).

Isso costuma ser justificado pela noção de “agência do jogador”, alegando-se que pedir rolamentos infringe tal agência do jogador, que deveria ser capaz de tentar tudo e ser beneficiado com uma ideia criativa.

Em momento nenhum Fate ignora isso…

O detalhe é que muitas vezes esse argumento é usado por jogadores mais experientes como:

  • Forma de roubar tempo de tela

Isso é feito porque jogadores mais experientes sabem os pontos de regra mais cobrados de maneira mecânica, pontos onde não haver a cobrança mecânica (rolamento de dados, uso de recursos e assim por diante) é algo impossível. Em geral, isso acontece em situações de combate, onde curiosamente a ideia de testar-se o jogador e não a ficha é abandonada.

Desse modo, o jogador experiente de certa forma “trapaceia” o resto do grupo, ao alocar seus melhores naipes naquelas situações que serão obviamente demandadas mecanicamente, pois saberá que, naquelas onde não há grandes cobranças mecânicas, ele pode conseguir usar sua “perícia de jogador” para cobrir a deficiente “perícia de personagem”, em um dos lados mais perversos do metagaming. Esse problema não é restrito ao Carisma, mas classicamente é onde o Carisma é mais afeta, sendo isso tão patente que isso afeta até o equilíbrio dos atributos em jogos um pouco mais modernos, como no D&D 3.5, onde uma redução de Força impacta mais do que a do Carisma.

  • Forma de criar um gatekeeping

Como derivação do fato acima, jogadores mais experientes conseguem usar isso como uma forma de gatekeeping, tanto contra jogadores novatos com contra narradores que tenham outra forma de ver o jogo.

Alegando-se que a cobrança do uso dos recursos do personagem (ou como é dito de maneira depreciativa, “a ficha”) seria restringir a “agência” do jogador, ele se beneficia do estilo do jogo para podar jogadores que investiram em outros estilos de personagem (ou simplesmente foram ruins demais no sorteio de seus atributos), além de impedir que o narrador tente, por meios mecânicos, oferecer “tempo de tela” para os jogadores que não se sobressaem em momentos onde a cobrança mecânica é sine-qua-non.

Por fim, aqui deve ter ficado claro o que ocorre: jogadores experientes conhecem as falhas do sistema (mesmo que não assumam ou não considerem falhas).

Isso não é ruim, muito pelo contrário: é parte da diversão para alguns explorar as falhas do sistema de jogo em benefício seu e (nos BONS jogadores) em benefício do grupo.

O problema é que. ao irem para o Fate, tais jogadores ficam incomodados quando o Fate expõe que qualquer coisa que possa ter impacto suficiente na narrativa deva ter um impacto mecânico: isso impede que eles subvertam os pontos fracos do sistema para se benificiar em detrimento ao “tempo de tela” de outros jogadores.

Como evitar

A primeira coisa é lembrar sempre que RPG é um jogo coletivo: um jogador que roube o “tempo de tela” de outro está fazendo mal não apenas para si, mas para todo o grupo.

A segunda coisa é ficar sempre atento para esse tipo de situação e oferecer ajuda a jogadores iniciantes, mostrando como as mecânicas do Fate podem beneficiar eles a aproveitar melhor o jogo.

Qualquer acusação de que “Meu Aspecto não representa isso”/“Essa perícia não demanda teste!”/“Por que preciso de uma Façanha” deve ser explicada em termos narrativos, mecânicos e de como um interfere no outro…

  • “Seu personagem é um Bárbaro Bruto das Montanhas do Norte? Que pena… Os guardas da cidade olham torto para você”
  • “Você matou todos os guardas, certo? Bem… Agora tem um peso sob sua cabeça, e o resto do grupo te observa meio torto.”
  • “Você tentou negociar uma saída honrosa com o Rei depois de ter exterminado todos os seus guardas? OK… Rola aí um Comunicação. Ei… O cara não te conhece de Adão e você é um Bárbaro Bruto das Montanas do Norte… Ainda tou dando uma boiada: em uma situação normal você já estaria no cadafalso…“

Por fim…

Uma dica que vale inclusive para narradores clássicos.

Agência não significa ausência de Consequência!

Vou repetir:

AGÊNCIA NÃO SIGNIFICA AUSÊNCIA DE CONSEQUÊNCIA!

Você pode sim pedir um rolamento de Carisma do Bárbaro bruto que vai negociar com o Rei.

“Ah, mas meu bárbaro vai negociar mostrando seu machado…“

E o Rei te manda para o cadafalso na hora

“E eu mato o rei”

E a população se revolta contra você

“Mas vou convencer eles que o rei era um crápula abusivo!”

Rola seu Carisma 8 para ver se eles caem na tua…

Boa sorte…

… vocẽ vai precisar!

Dito esse pequeno rant

Agência implica em você não impedir o jogador de TENTAR fazer qualquer coisa. Você não impede um mago de tentar atacar um goblin com seu bastão quando a magia acaba, não seria justo impedir o bárbaro de tentar negociar com o rei.

Entretanto, Agência não quer dizer que você será bem sucedido sempre! Da mesma forma que o ataque com bastão do mago pode resultar em ele (e o resto do grupo) tendo a garganta cortada pelo goblin, a negociação do bárbaro pode resultar em ele (e o resto do grupo) serem enviados para o cadafalso.

Isso em Fate é explicito o tempo tudo: Forçadas (e suas negações) e Invocações de Aspectos podem ser usadas o tempo todo. Sua ficha não substitui sua agência ou habilidade de jogo, mas a potencializa.

Meu Bárbaro das Montanhas de Gelo vai negociar com o Rei!

Bem… você sabe que o reino tem um problema com tribos invasoras das Montanhas de Gelo, e o Rei reconhece suas vestes… Ele não parece muito à vontade de falar com um “selvagem ridículo” (Narrador oferece PD)

Não… Meu bárbaro sabe que é hora de manter a compostura e tentar, mesmo sendo rídiculo, falar de maneira mais cortês (Jogador paga PD recusando a Forçada)

O Rei observa seu comportamento e diz: “Parece que você tem um pouco de educação e respeito… E sua demanda não me parece hostil. Diga-me qual ela é.”

Qual a chance de dar certo? O Narrador vai dizer… De repente, se o jogador tiver um bom rolamento, ele pode conseguir… E mesmo com um ruim, ele pode ser mandado para a Masmorra, onde acabará descobrindo que o Rei está mancomunado com os inimigos da mesa.

“Mas se eu aceitar as forçadas, vou ficar complicando a vida!”

Mas pense em todos os PDs que você poderá usar para tornar sua Força Bárbara ainda mais poderosa por ser um Bárbaro das Montanhas de Gelo

Fate é focado não no “poder”, mas no “tempo de tela”: todo personagem Fate pode tentar fazer coisas interessantes em um momento ou outro, basta entender como as coisas funcionam.

E se, ainda assim, você quiser usar os momentos do jogo para nulificar seus companheiros jogadores…

Desculpe, mas você está no jogo errado.

O Fate diz explicitamente que “qualquer momento onde a Falha e o Sucesso providenciarem algo interessante para a narrativa, deve-se rolar os dados”. Isso se deve por ser os momentos onde, mesmo que os eventos sejam fáceis, ainda existe uma chance de uma complicação interessante aparecer. Ou, mesmo onde os resultados forem teoricamente impossíveis, você AINDA TEM, por MENOR QUE SEJA, uma chance de sucesso.

Os dados ajudam a visualizar tal sucesso. Junto com todos os mecanimos ao redor (Pontos de Destino, Aspectos, etc)

Até porque, às vezes, depois das hostilidades do Bárbaro Bruto o Bardo do grupo descobre o melhor caminho para negociar com o Rei, mostrando Aspectos do mesmo… :)

Conclusão

Erros de principiante são normais, sejam aqueles derivados de inexperiência, vícios, compreensão inadequada ou tentativas intencionais de explorar-se o jogo. Nosso objetivo aqui é mostrar alguns deles e sugerir como evitá-los. Mas a única forma 100% segura de evitar tais erros é estudando o sistema e o conhecendo.

Então, até nosso próximo artigo e…

Role +4!

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